História e cristianismo em J. G. Machen

1 INTRODUÇÃO

O Fundamentalismo foi um movimento marcante de reação à entrada do Liberalismo Teológico nos arraiais das igrejas protestantes americanas no início do século XX. O termo “Fundamentalismo” é uma referência direta à obra de doze volumes intitulada The Fundamentals lançada em 1910. Seu conteúdo professou guerra aberta contra o ateísmo, o catolicismo, o socialismo, a filosofia moderna, o mormonismo, o espiritismo e muitos grupos semelhantes, mas principalmente, a Teologia Liberal “que se baseava numa interpretação naturalista das doutrinas da fé, a alta crítica alemã e o darwinismo, que pareciam subverter a autoridade da Bíblia” (MCINTIRE em ELWELL, 1992, v.2, p. 187).

Duas informações nos fornecem uma noção do impacto da obra: 1) O número de exemplares: Foram três milhões de cópias distribuídas gratuitamente por todo território americano. 2) As denominações incluídas: A obra teve a co-autoria de presbiterianos, batistas e anglicanos de vários lugares como Inglaterra, Escócia, Canadá e EUA.

Há historiadores como Roger E. Olson que dividem o fundamentalismo em duas fases: moderada e extremista (cf. OLSON, 2001, p. 576-84). Para ele, Machen e The Fundamentals fazem parte dessa primeira fase moderada. Mcintire divide a história do fundamentalismo em quatro fases (cf. MCINTIRE, 1992, p. 187-90).

Em sua primeira das quatro fases, o Fundamentalismo lutava pelos elementos fundamentais da fé cristã. Entretanto, não demorou muito e “a lista dos inimigos tornou-se mais estreita e os fundamentos, menos abrangentes” (MCINTIRE, 1992, p. 187) desviando o movimento do seu foco inicial. É na primeira fase, nesse cenário turbulento de luta direta contra o Liberalismo, que surge a figura de J. Gresham Machen.

Machen está ligado (como um protagonista de valor) a quase todas as obras literárias quando a matéria é a controvérsia Fundamentalismo-Liberalismo (cf. PIERARD em ELWELL, 1992, p. 424-29; CAIRNS, 1995, p. 420-33; HART, 1993; DOLLAR, 1962; NOLL et. al, 1983, p. 378-82; MCINTIRE, 1992). Apesar de não apreciar a denominação “fundamentalista”, Machen e o Fundamentalismo (da primeira fase) tinham um inimigo comum – o Liberalismo. Nas palavras do próprio Machen: “Na presença de um grande inimigo comum, eu tenho pouco tempo para atacar meus irmãos [fundamentalistas] que permanecem comigo na defesa da Palavra de Deus” (STONEHOUSE, 1954, p. 337-8). Ele acreditava viver em tempos de conflito. Em suas palavras, “O presente não é tempo para tranqüilidade ou prazer, mas para seriedade e obra súplice” (MACHEN, 2001, p. 172).

Para muitos, Machen foi o principal teólogo do movimento (OLSON, 2001, p. 557). A explicação para tamanha reputação se encontra em sua erudição, mas principalmente, por sua obra Cristianismo e Liberalismo onde se propõe demonstrar que o “Liberalismo moderno […] não é cristão” (MACHEN, 2001, p. 18).

Por sua erudição, por seus feitos numa época marcante para o protestantismo, pelo impacto e, principalmente pela natureza holística de sua obra, justifica-se uma análise cuidadosa de sua vida e obra. Todavia, devido às limitações de espaço, nos deteremos a um aspecto marcante de seu material apologético: O assentimento da historicidade dos eventos bíblicos como fator indicador da autêntica ortodoxia cristã.

O artigo que segue trará uma breve biografia de Machen seguida de uma análise de sua magnum opus (Cristianismo e Liberalismo); em seguida exporá a importância da história no cristianismo tendo o Liberalismo e a Neo-ortodoxia (dois fenômenos confrontados por Machen) como contraponto. Por fim, uma palavra sobre a perspectiva de Machen quanto à crítica histórica.

2 UMA BREVE BIOGRAFIA (cf. STONEHOUSE, 1954; NICHOLS, 2004; KELLY, Em ELWELL, v. 2, p. 463-4. MACHEN, 2001, p. i-iv).

Nascido em Baltimore em 28 de julho de 1881, John Gresham Machen era parte de uma família presbiteriana próspera, tanto financeira quanto culturalmente. Seus pais, Arthur W. Machen e Mary G. Machen o introduziram em um estilo de vida que combinava piedade e intelectualidade. Machen sempre foi encorajado a buscar o melhor da educação. Por exemplo, logo cedo foi acostumado a falar francês em casa. Sobre sua erudição e embates com os liberais, Olson diz que “Seus oponentes teológicos liberais não conseguiram encontrar nenhuma falha em sua erudição e nem demiti-lo taxando-o de obscurantista demente, como costumava fazer com outros fundamentalistas” (OLSON, 2001, p. 577).

Formou-se com honras (primeiro da turma) na Universidade de Johns Hopkins em 1901, e logo após estudou um ano com o famoso estudioso do grego bíblico B. L. Gildersleeve (na época, presbítero de sua igreja). Em 1902 se matriculou em Princeton. Em 1905 concluiu sua graduação. Lá, estudou com homens como B. B. Warfield e Greahardus Vos. Após a conclusão dos seus estudos em Princeton (1905), foi convidado por Francis L. Patton e William P. Armstrong a ser instrutor de grego bíblico. Porém, preferiu ir a Alemanha estudar em Marburg e Göttingen. Lá estudou um semestre em cada instituição. Teve como um de seus mestres o famoso liberal Wilheim Herrman. A despeito da extraordinária influência de Wilheim Herrman e da crise teológica decorrente dessa, Machen, com ajuda de B. B. Warfield, Patton e Armstrong, persistiu numa visão conservadora quanto às Escrituras.

De volta ao território americano, aceitou o convite de ensinar grego bíblico em Princeton. Na época, o livro texto era Essentials of New Testament Greek de Huddlestone. Por considerá-lo “pobre e escasso”, Machen o complementou com exercícios extras produzidos por ele mesmo. Em 1923, suas notas de aula se converteram em New Testament Greek for Beginners. Sem dúvida, uma obra marcante para todos os estudantes iniciantes de grego do Novo Testamento do século XX.

Em 1920 Machen teve sua primeira participação controversa em sua denominação. Valdeci da Silva Santos nos explica:


Naquela ocasião [Assembléia Geral], os delegados da reunião deveriam votar o Plano Filadélfia, que previa a coalizão de dezenove pequenas denominações presbiterianas em uma única denominação nacional. […] contrariando os colegas de cátedra [Joseph Ross Steveson e Charles Eerdman], Machen se opôs ao plano, por entender que ele pretendia uma reunião jurídica e uma pluralidade teológica indesejável (SANTOS, 2004, p. 152).
Em 1923 Cristianismo e Liberalismo, um marco para o fundamentalismo, foi lançado confrontando não somente o Liberalismo como todos os que o toleravam. A obra evidenciou ainda mais as diferenças entre liberais e ortodoxos que, até então, ainda coexistiam nas mesmas denominações e instituições de ensino. Algumas das novas denominações criadas a partir de 1930 foram: Igrejas Fundamentalistas Independentes dos Estados Unidos (1930); Associação das Igrejas Batistas Regulares (1932); Igreja Presbiteriana Ortodoxa (1936); Igreja Presbiteriana Bíblica (1938) e Associação Batista Conservadora dos Estados Unidos (1947).

Com a persistência da Presbyterian Church in the U.S.A. (doravante, PCUSA) e Princeton em tratar as diferenças nas instituições como questões meramente administrativas e não doutrinárias, Machen, após muitas lutas, deixa Princeton em 1929 para fundar no dia 25 de setembro do mesmo ano o Seminário Teológico de Westminster. Depois da derrota no tocante a Princeton, Machen perdeu a luta com respeito à Junta de Missões Estrangeiras. Foram várias as acusações feitas ao Teólogo de Princeton. Dentre elas: falta de zelo e fidelidade em manter a paz na igreja (MACHEN, 2001, p. iii). No dia 29 de março de 1935 foi suspenso do ministério da PCUSA. Em 1936, junto com outros cinco mil conservadores fundou a Igreja Presbiteriana da América, que posteriormente foi denominada Igreja Presbiteriana Ortodoxa (OPC).

Resistindo aos conselhos de amigos, Machen foi para o Estado de Dakota do Norte em resposta a um convite para pregar. No decorrer da viagem contraiu pneumonia e no primeiro dia de 1937 veio a falecer com apenas 55 anos de idade. Como Calvino e outros grandes homens que representam uma era, Machen teve um fim prematuro. Suas últimas palavras foram: “Sou grato pela obediência ativa de Cristo sem a qual não há esperança” (MACHEN, 2001, p. iv).

3 CRISTIANISMO E LIBERALISMO, SUA MAGNUM OPUS.



A produção literária de Machen é extensa; inclui artigos, pregações e livros. De todas elas, Cristianismo e Liberalismo é, sem dúvidas, a mais emblemática. Stonehouse, um dos grandes biógrafos de Machen, dedica um capítulo inteiro sobre a obra (STONEHOUSE, 1954, p. 336-50). Aqui queremos alistar duas possíveis razões para sua proeminência: 1) A repercussão e 2) Seu conteúdo holístico.

3.1 A Repercussão.

Nenhum livro faz sucesso somente devido ao seu conteúdo. É na sintonia entre conteúdo e o “espírito de mundo” (zeitgeist) e/ou contexto histórico que encontramos a fórmula do sucesso. Faz-se, pois, necessário uma palavra sobre o contexto histórico de Cristianismo e Liberalismo.

Segundo Stephen J. Nichols: “O contexto imediato de Cristianismo e Liberalismo é o sermão pregado por Harry Emerson Fosdick no dia 21 de maio de 1922 cujo título era ‘O Fundamentalismo ganhará?” (NICHOLS, 2004, p. 82). Stonehouse corrobora as palavras de Nichols ao afirmar que a aceitação de Macmillan se deu porque foi “influenciada pela atenção que tinha sido atraída para Fosdick, a grande controvérsia, e a força do movimento de reafirmação dos fundamentos” (HART, 1995, 341).

Fosdick “foi um dos clérigos mais influentes da primeira metade do século XX” (LINDER em ELWELL, 1991, v.2, p. 183) bem como um dos maiores “popularizadores do liberalismo teológico moderno” (LINDER, 1991, p. 183). Por seu empenho em defesa do Liberalismo, foi denominado pelos conservadores de “Moisés do modernismo” e “Jesse James do mundo teológico”.

A influência de Fosdick e sua pregação explícita contra o fundamentalismo explicam a aceleração da publicação de Cristianismo e Liberalismo. Era preciso uma resposta rápida e à altura. E Macmillan encontrou um excelente representante do lado conservador da controvérsia. A editora recebeu o livro no início de dezembro de 1922 e dois meses depois foi publicado. Segundo Stonehouse, “durante do resto do ano um pouco menos que mil cópias foram vendidas, mas em 1924, quando o livro tornou-se popular e a controvérsia [fundamentalismo-modernismo] tornou-se mais intensa, a venda total aproximou-se das cinco mil cópias” (STONEHOUSE, 1954, p. 341).

O sucesso de vendas não é a única amostra de sua importância e/ou proeminência em relação às suas outras obras. Foram várias as recomendações feitas por especialista. Mas ficaremos com a mais simbólica; as palavras de comentarista secular Walter Lippmann:

É um livro admirável. Por sua perspicácia, por sua importância, e por seu tino, esta fria e rigorosa defesa do protestantismo ortodoxo é, penso, o melhor argumento popular produzido pelo outro lado da controvérsia. Faremos bem ouvir o Dr. Machen. Os liberais ainda têm que respondê-lo (NICHOLS, 2004, p. 82).
3.2 O Conteúdo Holístico.

Como o próprio título revela, a obra lida com uma situação histórica específica: A distinção entre Liberalismo (modernismo) e Cristianismo torna o primeiro uma ameaça a ser condenada, justificando-se, pois, uma luta aberta contra o mesmo.

Machen lida, pois, com condições peculiares dos seus dias; como por exemplo, a aceitação de liberais em instituições cristãs; a desonestidade desses na manutenção de expressões ortodoxas, porém, redefinidas, bem como no uso dos recursos de instituições confessionais. O uso constante da expressão “situação presente”, “presente controvérsia”, “no presente”, “o presente”, “medidas necessárias hoje” (MACHEN, 2001, p. 163, 166, 169, 170, 172) reforça sua preocupação com uma situação histórica particular. Em alguns casos, Machen usa o termo “igreja” pressupondo tratar-se da “Igreja Presbiteriana”. Alguns dos conselhos do último capítulo só poderiam ser aplicados ao governo de igreja por ele defendido (presbiteriano), revelando assim, a aplicabilidade restrita da obra.

Apesar de sua natureza particular, em Cristianismo e Liberalismo Machen não nos proporciona somente um manual peculiar aos presbiterianos contra o Liberalismo Teológico do início do século XX, tornando-se uma obra “presa” a um contexto histórico particular. Antes, por tratar com os elementos essenciais do cristianismo, ou seja, as doutrinas inegociáveis que fazem do cristianismo, cristianismo, Machen, legou à Igreja as colunas doutrinárias do cristianismo.

Cristianismo e Liberalismo não somente nos ajuda a entender a como lidar com o Liberalismo; ele nos apresenta o que realmente é o cristianismo. Embora a obra tenha um caráter apologético, é uma obra mais positiva que negativa, por que enquanto combate o Liberalismo (natureza negativa), Machen nos ensina o que é Cristianismo (natureza positiva). “A resposta de Machen vai além da sua situação contemporânea e fala de questões de importância atemporal” (MACHEN, 2001, p. 83).

O caráter holístico da obra também é revelado em sua metodologia. Machen analisa o sistema a partir de seus fundamentos e/ou pressupostos. Sua crítica capital ao Liberalismo é que ele “[…] procede de uma raiz completamente diferente”, ou “bases da fé” (MACHEN, 2001, p. 172) opostas. Aqui Machen nos alerta para o fato de que é exatamente nos fundamentos que se trava a verdadeira batalha pela fé. Toda teologia é construída a partir de pressuposto e/ou fundamentos; e é ai que as batalhas devem ser travadas.

A declaração que segue revela a consciência de Machen do caráter atemporal de sua defesa do cristianismo: “a investigação com a qual estamos agora preocupados é sem dúvida a mais importante de todas aquelas com as quais a igreja deve lidar” (MACHEN, 2001, p. 19).

Por sua natureza holística, Cristianismo e Liberalismo ajuda-nos a julgar e/ou entender assuntos outros como espiritualidade, exclusivismo, ecumenismo, milagres, crítica bíblica, apologética, linguagem religiosa, amor, justiça, salvação, pragmatismo, a natureza da fé etc. Sua metodologia de abordagem ao Liberalismo pode ser usada para avaliação de qualquer fenômeno religioso. Ela pode ser usada contra o subjetivismo do misticismo bem como a secura anti-sobrenatural do cristicismo histórico que negava os eventos mais importantes do cristianismo (morte e ressurreição de Cristo). Sem dúvidas, uma obra para todos os tempos.

4. CRISTIANISMO E HISTÓRIA.

O tema “história” é uma constante na vida e obra de J. Gresham Machen. Ele aparece cedo nos escritos do teólogo de Pricenton. Permeia toda sua monografia de graduação sobre o nascimento virginal de Cristo e é tônica do seu sermão de ordenação cujo título era História e Fé: Um Evangelho despido da história é simplesmente uma contradição de termos (MACHEN, 2001, p.i.). A temática é reiterada várias vezes ao longo de sua produção literária.

4.1 O Liberalismo e a História.

Sua preocupação com a história tinha uma explicação: A separação entre cristianismo e história era, para Machen, o grande interesse da teologia moderna (MACHEN, 1951, p. 170). Em suas palavras:

Em uma época como esta, é óbvio que cada herança do passado deve ser objeto de uma crítica aguda; […] a dependência de qualquer instituição do passado é agora, às vezes, até mesmo considerada como fornecedora de uma presunção não em função da mesma, mas contra. […] Se tal atitude for justificável, então nenhuma instituição é encarada com uma presunção hostil mais forte do que a instituição da religião cristã, visto que nenhuma outra instituição tem se baseado com mais honestidade na autoridade de uma era passada do que ela (MACHEN, 2001, p. 15).

Ele entendeu como poucos que quando o assunto é teologia moderna, uma das questões cruciais era o lugar da história no Evangelho cristão (HART, 1995, p. 344). Para Machen “O cristianismo […] é dependente da história” (MACHEN, 2001, p. 122). E ainda: “um evangelho independente da história é uma contradição de termos” (MACHEN, 2001, p. 122). Para ele:

O estudante do Novo Testamento deve ser primariamente um historiador. O centro e o cerne de toda a Bíblia é história. Tudo que está na Bíblia está ligado a um arcabouço histórico e nos conduz a um clímax histórico. A Bíblia é primariamente um livro histórico (MACHEN, 1951, p. 170).

A hermenêutica moderna foi alvo das críticas de Machen, pois não permitia se lê um evento sobrenatural como histórico. Machen detecta esse pressuposto ao afirmar que “a raiz do movimento [liberal] é uma; as variedades da religião liberal moderna são arraigadas no naturalismo – isto é, na negação de qualquer entrada do poder criativo de Deus” (MACHEN, 2001, p. 14). De encontro ao naturalismo Machen assegura que:

O Jesus apresentado no Novo Testamento foi claramente uma Pessoa histórica – isto é admitido por todos os que têm se confrontado com os problema [sic] históricos. Mas, o Jesus apresentado no Novo Testamento foi claramente uma Pessoa sobrenatural. Porém, para o liberalismo moderno, uma pessoa sobrenatural nunca é histórica (MACHEN, 2001, p. 108).

De Ritschl e Kant o Liberalismo herdou a idéia de que a mensagem religiosa se reduz à ética. Essa redução do cristianismo tinha uma relação direta com a desvalorização de sua historicidade. Vindo em uma corrente oposta, Machen afirma que a ética cristã (imperativo) está atrelada e/ou é decorrente do indicativo histórico da morte e ressurreição de Cristo. Em suas próprias palavras:

O pregador liberal está realmente rejeitando toda a base do Cristianismo, que não é uma religião edificada sobre aspirações, mas em fatos. Aqui se encontra a diferença fundamental entre o liberalismo e o Cristianismo – o liberalismo está, no geral, no modo imperativo, enquanto o cristianismo começa com um indicativo triunfante […] (MACHEN, 2001, p. 53).

Ainda pensando na relação entre ética e cristianismo, Machen argumenta que há fatos que se impõem em nossa vida. São eles: sofrimento, morte, culpa e pecado. A esses fatos, afirma Machen, “o pregador moderno responde – com exortação” (MACHEN, 1951, p. 171). A essa postura Machen contrapõe:

Muito eloqüente, meu amigo! Mas que pena! Você não pode mudar os fatos. O pregador moderno oferece reflexão. A Bíblia oferece mais. A Bíblia oferece notícias – não reflexão sobre o antigo, mas notícias de algo novo; não algo que pode ser deduzido ou descoberto, mas algo que aconteceu; não filosofia, mas história; não exortação, mas o Evangelho (MACHEN, 1951, p. 171).

No primeiro capítulo de sua magnum opus, Machen argumenta que a essência do cristianismo é doutrina. Uma clara rejeição do conceito sentimental e/ou experimental de religião defendido pelos liberais e herdado de Schleiermacher. Sobre a relação história e doutrina Machen afirma:

Desde o início, o evangelho cristão, como de fato o nome “evangelho” ou “boas novas” infere, consistia de relato de algo que havia acontecido. […] “Cristo Morreu” – isto é história; ‘Cristo morreu pelos nossos pecados – isto é doutrina. Sem estes dois elementos, conjugados em união absolutamente indissolúvel, não há Cristianismo.” (MACHEN, 1951, p. 35)

E mais:

O mundo deveria ser redimido através da proclamação de um evento. E com o evento estava o seu significado; e a apresentação do evento com seu significado é doutrina. Estes dois elementos estão sempre combinados na mensagem cristã. A narração dos fatos é história; a narração dos fatos com significado dos mesmos é doutrina (MACHEN, 1951, p 37).
Em suma, para Machen, no cristianismo, o sobrenatural, a ética, a doutrina e a história estão essencialmente conectadas. Nas palavras de Machen, trata-se de uma “união indissolúvel”. O abandono da história pode até manter a crença “filosófica” em Deus com seus corolários éticos. Porém, afirma Machen, o abandono da história, “nunca pode preservar o Evangelho, pois ‘evangelho’ significa ‘boas novas’” (MACHEN, 2004, p. 98).

4.2 A Neo-ortodoxia e a História.

No dia 2 dezembro de 1929, A Savage of Scribner´s Publishing House enviou para Machen uma cópia da obra de Emil Brunner intitulada The Theology of Crisis. O objetivo da editora era uma recomendação e/ou conselho de um representante da ala conservadora (HART, 1991, p. 189). A resposta de Machen a Scribner “tornou-se sua resposta típica quando o assunto era neo-ortodoxia; disse que não entendia a teologia da crise como um retorno ao cristianismo evangélico, mas seu conhecimento limitado o impedia de um julgamento final” (HART, 1991, p. 189).

Um ano antes, em um artigo escrito em 23 de abril para um pequeno grupo de ministros, Machen demonstra muito cuidado em tomar uma posição para o movimento que estava surgindo – a teologia da crise. Em várias partes do documento Machen revela suas limitações. Ele diz que tem “poucas palavras” (MACHEN, 1991, p. 197) e que tem dificuldade de “explicar o que não entende” (MACHEN, 1991, p. 200).

Para Machen, em alguns assuntos como: o homem perdido no pecado e a graça de Deus como um dom de Jesus Cristo seu filho, a teologia da crise “soa como John Bunyan, João Calvino, o Catecismo Menor e a Fé Reformada” (MACHEN, 1991, p. 200). No entanto, apesar de todo cuidado para com assuntos não completamente compreendidos, Machen é firme em declarar que:

Eles [Barth, Brunner e seus associados] diferem, eu penso (se pudermos ignorar detalhes e irmos imediatamente ao centro das coisas) – eles diferem na sua epistemologia, diferem em sua atitude para com simples informação histórica que a Bíblia contém (MACHEN, 1991, p. 201).

Para Machen, Barth “tenta fazer a fé cristã independente das descobertas da história científica quanto a vida de Cristo” (MACHEN, 1991, p. 203). E ainda, “A atitude de Barth e seus associados no tocante ao criticismo histórico constitui uma fraqueza mortal da escola” (MACHEN, 1991, p. 204).

A despeito de sua reconhecida limitação julgamento, o grande incômodo para Machen está na estranha indiferença de Barth a questões de criticismo literário e histórico no tocante a Jesus Cristo. Essa indiferença era tamanha que até mesmo Bultmanm, com seu ceticismo extremo na esfera histórica, pode aparentemente ser considerado um membro da escola barthiana uma vez que era um dos contribuidores do jornal Zwischen den Zeiten (MACHEN, 1991, p. 204).

“A reação inicial de Machen ao barthianismo sugere que ele considerou a neortodoxia, em suas variações tanto na América quanto na Europa, como uma extensão do Liberalismo protestante ao invés de um repúdio” (HART, 1991, p. 193). Ambas as escolas tinham problemas quanto à historicidade do cristianismo. Na primeira, a negação do sobrenatural não permitia uma “leitura completa” do registro dos Evangelhos fragmentando-os na busca do Jesus histórico. Na segunda, as doutrinas basilares como Trindade, fé, pecado e redenção em Jesus eram fruto de uma leitura descompromissada e indiferente da história. Na primeira, o Evangelho era julgado pela crítica história naturalista; na segunda, a história era desvalorizada pelo subjetivismo decorrente do seu conceito deturpado de revelação. Ambas eram ameaças ao verdadeiro cristianismo, pois tinham negligenciado um elemento essencial – sua historicidade.

5 O CRITICISMO HISTÓRICO.

Segundo Eta Linnemann, “Para a teologia histórico-crítica, a razão crítica decide o que é e o que não pode ser realidade na bíblia; e essa decisão é feita na base da experiência diária acessível a cada pessoa” (LINNEMANN, 2009, 101-102). Em outras palavras, “Aquilo que é espiritual é julgado segundo critérios da carne” (LINNEMANN, 2009, p. 102). Certamente partindo desse pressuposto, nunca chegaremos a conclusões de cunho sobrenatural. Pois, como bem colocou Augustus Nicodemus: “É sabido e reconhecido, nas mais diversas áreas do conhecimento, que a escolha de um método já determina, por antecipação, a extensão e o tipo de resultados da pesquisa” (LOPES, 2005, p. 136).

A despeito de seus pressupostos e métodos, para Machen “Não podemos, […], ser indiferentes ao criticismo bíblico” (MACHEN, 1951, p. 183-184). Ele entendia que a rejeição do caráter histórico das Escrituras era uma ameaça a igreja uma vez que a Escritura é o fundamento desta. “Machen não apenas censura as críticas liberais, mas também o que ele considerou a piedade convencional e descuidada do protestantismo” (HART, 1995, p. 37). Apelar para o sobrenatural não era o único caminho. Nas palavras de Hart:

Embora [Machen] cresse que a origem do cristianismo era sobrenatural e que a visão de Paulo é mais bem entendida com uma reflexão dessa realidade, Machen não se satisfazia com a história providencial para explicar a origem do movimento cristão (HART, 1995, p. 50).

“Ao invés de evitar os métodos e achados da alta crítica, como muitos conservadores fizeram, Machen usou a nova erudição tanto para defender o Cristianismo histórico quanto para atacar a complacência do protestantismo corrente” (HART, 1995, p. 50).

Para Hart, a postura de Machen tem explicação na sua formação em Princeton. “Tão incongruente quanto parece, a doutrina da inerrância bíblica do Seminário de Princeton instigou seus estudiosos a intensificar o estudo crítico ao invés de fugir dele” (HART, 1995, p. 42). Hart esclarece:

[…] teólogos de Princeton usavam métodos críticos para argumentar que inspiração e erudição avançada eram compatíveis. […] Ao invés de impor limites, essa doutrina [inspiração] permitiu os estudiosos de Princeton explorar completamente os aspectos humanos da formação e recepção da Bíblia (HART, 1995, p. 43).

Aqui se faz necessário uma palavra sobre o estudo da história no início do século XX. Uma nova concepção da pesquisa histórica estava surgindo – era a Nova História. Enquanto Machen “assumiu uma visão atemporal e estática do passado que objetivava encontrar o propósito original do autor” (HART, 1995, p. 55), os da nova escola estavam preocupados com os elementos sociais e culturais que explicavam os eventos históricos. Para essa escola, cristianismo não era definido pelos ensinos de Paulo e dos apóstolos; antes, como tudo nessa escola, Cristianismo era um fenômeno social. Muito da obra The Origin of Paul´s Religion de Machen foi investido para revelar “as explicações impróprias do naturalismo que atribuiu a crença de Paulo ao condicionamento do desenvolvimento histórico e cultural” (HART, 1995, p. 51).

Essa diferença entre escolas fica clara quando observamos as variações nos julgamentos feitos em resenhas e/ou comentários sobre The Origin of Paul´s Religion. Elas iam de elogios rasgados como os feitos por Benjamin W. Bacon até as críticas feitas por James Moffatt (HART, 1995, p. 53-4). Parte das críticas bem como dos elogios se davam pela concepção de história, e, por conseguinte, da metodologia empregada.

Machen reconhecia a intensa relação entre método e pressuposto. Ele era consciente de que não existia um “criticismo científico puramente neutro” (MACHEN, 2004, p. 519. Além disso, Machen tinha ciência de que muitas das pressuposições do criticismo eram naturalistas e por isso “uma pessoa sobrenatural, de acordo com os historiadores modernos, nunca existiu” (MACHEN, 1951, p. 175). Para ele, a negação do nascimento virginal, por exemplo, se dava por “pressuposições filosóficas ao invés da tradição histórica” (HART, 1995, p. 41).

Ele critica o pressuposto naturalista que nega o sobrenatural quanto lida com a tentativa liberal de separação o natural do sobrenatural no relato bíblico. Para ele “o processo de separação nunca foi realizado com sucesso.” (MACHEN, 2001, p. 108), pois revela inconsistência entre os pressupostos e as conclusões. Ele nos alista três razões para o fracasso de uma “leitura seccionada” dos Evangelhos:

Em primeiro lugar, existe a dificuldade inicial de separar a narrativa natural da narrativa sobrenatural nos Evangelhos. As duas são inextrincavelmente interligados. […] Em segundo lugar, suponhamos que a primeira tarefa tenha sido realizada. É realmente impossível, mas suponhamos que tenha sido realizada. Você tem o Jesus histórico – um mestre da justiça, um profeta inspirado, um adorador puro de Deus. […] Mas tudo em vão! […] Há uma contradição bem no centro do Seu ser. Essa contradição surge de sua consciência messiânica. (MACHEN, 1951, p. 176-7).

Aqui temos um grande problema, afirma Machen. Para os mesmo liberais que afirmam, por meio da crítica histórica, que Jesus tinha uma consciência messiânica, “um humilde mestre que pensa ser o juiz da terra […] seria um insano” (MACHEN, 1951, p. 176-7).

“Em terceiro lugar, o Jesus liberal é insuficiente para explicar a origem da Igreja Cristã. O poderoso edifício da cristandade não foi construído em um pin-point” (MACHEN, 1951, p. 176-7). E, nas palavras de Machen, “história odeia um vácuo” (MACHEN, 1951, p. 181-2). Para Machen, “A Igreja Cristã […] é fundamentada na ressurreição de Cristo dos mortos. Se a ressurreição é negada, então a origem da Igreja torna-se um problema insolúvel” (MACHEN, 1997, p. 58). “A igreja não foi fundada na memória de um mestre morto, mas na presença de um Senhor vivo. A mensagem, ‘Ele ressuscitou’ – é o coração do Evangelho” (MACHEN, 1997, p. 59). Com essas três considerações, Machen revela a contradição entre as conclusões dos liberais com seus pressupostos anti-sobrenaturais.

Em suma, Machen tinha o estudo da história como essencial para o estudante das Escrituras. Por ser um livro histórico, a Bíblia faz daqueles que a desejam entendê-la verdadeiros historiadores. O historiador, por sua vez, deve ser coerente com os dados extraídos da pesquisa histórica séria, providenciando assim explicações lógicas para os eventos históricos uma vez que “história odeia um vácuo”. Além disso, deve ser cuidadoso visto que não existe neutralidade na pesquisa histórica. Sem esquecer-se, claro, de não ignorar as pesquisas da crítica histórica.

6 CONCLUSÃO

Temos muito a aprender com o zelo de Machen para com a historicidade do cristianismo. São muitas as implicações extraídas das colocações feitas pelo teólogo de Princeton. Aqui queremos alistar cinco:

Em primeiro lugar, intelectualidade não é antagônica à espiritualidade. Não podemos apelar à providência sempre estivermos diante das acusações feitas por estudiosos ignorando os fatos que se impõe; nem muito menos supersticiosamente ignorar os dados do estudo crítico. Em contraponto, ao mesmo tempo em que nos desafia ao estudo profundo, Machen reconhece que toda análise é direcionada por pressupostos.

Em segundo lugar, o assentimento da historicidade dos eventos bíblicos nos desperta para a tarefa missionária. Por possuir uma mensagem histórica e não “existencial atemporal”, o cristão não pode esperar que o homem encontre dentro de si mesmo o diagnóstico e a resposta para seus problemas. Ele precisa ouvir a notícia da morte expiatória e ressurreição corpórea de Cristo para responder com fé. “A fé vem pela pregação” (Rm. 10.17).

Em terceiro lugar, Machen desafia a igreja a extrair das boas notícias tanto sua doutrina quanto sua ética. A ênfase em ética ou em bons conselhos desvinculada dos eventos chaves do cristianismo nivela a igreja cristã a outras religiões. “É a conexão da experiência presente do crente com a aparição histórica real de Jesus no mundo que previne nossa religião de ser misticismo e faz com que seja cristianismo” (MACHEN, 2001, p.122).

Em quarto lugar, Machen nos ajuda com a tarefa apologética. A fé é uma resposta a um evento histórico (Rm. 10.17), portanto, não pode nascer de dentro de nós mesmo via argumentação. Nenhuma manobra filosófica pode levar pessoas à fé cristã visto que fé é uma resposta (reação) ao anúncio de um evento histórico. Em suas palavras: “não algo [é] que pode ser deduzido ou descoberto […] não filosofia, mas história” (MACHEN, 1951, p. 171).

Por último, Machen desafia aqueles que hoje se denominam “fundamentalistas” a lutar pelos elementos fundamentais da fé como aqueles da primeira fase. Quando estudamos a história de Machen, ficamos tristes em constatar que os “princípios elementares” dos primeiros fundamentalistas tornaram-se “pormenores fundamentais”. A luta dos primeiros fundamentalistas era pela inerrância das Escrituras, a historicidade dos eventos bíblicos etc. Hoje, ser fundamentalista é lutar por ou contra instrumentos musicais, versões, dispensacionalismo e questões específicas envolvendo a liberdade de consciência. Essa, com certeza, não foi a luta de Machen; certamente não é a minha, e espero que não seja a sua.

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Um comentário:

  1. Gostei muito deste trabalho sobre Machen, estarei incentivando os alunos de Teologia Contemporânea a lerem.

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Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.