Uma palavra sobre a lei de Moisés

Introdução

A lei de Moisés. Sem dúvidas, um assunto controverso no cristianismo. Enquanto alguns resistem a qualquer apelo direto ao AT como um guia da vida cristã ou a vida na igreja (e.g., Lutero); outros entendem que a lei deve servir de guia no governo da igreja (e.g., Heinrich Bullinger). Cada teólogo de renome tem algo a dizer sobre a lei. Para Calvino, o principal uso da lei é o chamado “terceiro uso” – o uso teológico. Barth, por exemplo, Lei é o conteúdo do Evangelho. Daniel Fuller afirma não haver elementos contrastantes no Evangelho e na Lei – ambos são um todo contínuo.

Devido ao indiscutível desacordo para com a função da Lei de Moisés na igreja, faz-se necessário uma meditação sobre o assunto. É fato que meu objetivo não é apresentar um tratado sobre a lei, mas simplesmente introduzir o leitor ao assunto e a algumas de suas principais nuanças. Espero poder ajudá-lo.

Visões quanto à Lei (cf. GUNDRY, 2003).

1. Reformado Não-Teonômico: como os reformados, eles dividem a lei em três partes: moral, cerimonial e civil. Tal divisão é vital para a argumentação dos três primeiros pontos de vista. Para os não-teonômicos, “as leis cerimoniais, as leis civis e o código penal foram anulados, e a lei moral [os dez mandamentos] recebeu mais esclarecimentos na pessoa e nos ensinos de Jesus Cristo” (VANGEMEREN, in: Lei e Evangelho, 2003, p. 39 - itálico nosso). A continuidade da lei se resume aos dez mandamentos.

2. Reformado Teonômico: “…as leis permanentes do AT continuam moralmente obrigatórias no NT, a não ser que sejam abolidas ou modificadas por revelação posterior” (BAHNSEN, in: Lei e Evangelho, 2003, p. 154). Para estes, as únicas leis abolidas foram as leis relacionadas aos sacrifícios e à pureza.

3. Lei com estímulo à santidade: nega a concepção antagônica entre lei e evangelho. Os contrastes apresentados nas Escrituras não são entre o evangelho e a lei, mas entre o evangelho e a perversão da lei pelos judeus (legalismo). Como nas visões apresentadas acima, a divisão da lei em três partes é crucial para essa visão, pois “se a lei continua de alguma forma sendo autoridade direta para o crente, precisamos concluir que algumas das suas leis precisam ser colocadas em categorias diferentes de outras” (MOO, in: Lei e Evangelho, 2003, p. 242 – itálico nosso).

4. Dispensacionalista: a lei é um todo e sua relação direta com o povo de Deus chegou ao fim com a vinda de Cristo e a igreja. As conclusões teológicas são iguais as do luterano modificado. Porém, eles chegam por “caminhos exegéticos e teológicos” diferentes.

5. Luterano Modificado: como no luteranismo tradicional, Lei e Evangelho são conceitos antitéticos que coexistem ao longo de toda Bíblia (MOO, in: Lei e Evangelho, 2003, p. 237). No primeiro temos o que Deus exige de nós e no segundo o que ele nos dá. A modificação da visão luterana tradicional está na natureza do contraste entre Lei e Evangelho. Essa escola defende um contraste histórico. Há descontinuidade entre a lei mosaica e o evangelho de Cristo. Toda lei mosaica tem seu cumprimento em Cristo. Esse cumprimento significa que a lei de Moisés não é mais a fonte direta e imediata, ou o juiz da conduta do povo de Deus. Eles são aplicáveis a nós “na medida em são passados para nós por meio de Cristo” (MOO, in: Lei e Evangelho, 2003, p. 95). Para não serem confundidos com antinomistas, eles afirmam que ainda estão sujeitos à lei de Deus, mas não à lei mosaica.


A Divisão da Lei: Muitos dividem a Lei de Moisés em três partes: moral, cerimonial e civil. Tal divisão é questionável e perigosa, pois pode incentivar erros exegéticos quando tratada como um pressuposto na prática interpretativa. Além disso, a divisão da lei em três partes é desconhecida tanto nas Escrituras (AT e NT) como na antiga literatura rabínica (cf. DORSEY, 1991, p. 329). O próprio Senhor Jesus tratou a lei dessa forma – como um todo (cf. Mt. 23:23). Categorizar uma parte lei como “moral” é, no mínimo, curioso. Não seria toda a Lei moral? (ibid., p. 330). A divisão aqui questionada não é divisão de importância, pois reconhecemos que essa existe, mas àquela que reparte a lei em partes “opcionais” ou “temporárias”.

Para justificar a divisão da lei, alguns têm recorrido aos contrastes como os que encontramos em Oséias 6:6: “Pois misericórdia quero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos”. Quando a atitude de coração é colocada em contraste com os rituais como em Oséias 6:6, a intenção “não é descartar os rituais como opcionais ou passíveis de serem ignorados” (MOO, in: Lei e Evangelho, 2003, p. 244 – itálico nosso).

Por fim, o ônus da prova está com aqueles que defendem a divisão.


O uso do vocábulo “Lei” (nomos) em Paulo
(cf. MOO, 1983, pp. 75-85):

1. Das 119 vezes que Paulo usa a Lei, nenhuma se encontra no plural. Assim, Paulo trata da Lei como uma entidade ao invés de uma série de mandamentos.

2. A presença ou não de artigo antes de nomos tem levado alguns estudiosos a crer que a presença do artigo é uma referência a lei de Moisés e a ausência do artigo à lei em geral. Há dois problemas com tal concepção: (a) O uso claro de Josefo, Filo e da LXX do anartro (substantivo sem artigo) referindo-se claramente a lei de Moisés. (b) Considerações sintáticas também explicam a variação do uso de nomos.

3. nomos significando “sistema”, “ordem”, “autoridade” sempre é construída no genitivo.

4. Paulo usa nomos para se referir a Palavra de Deus como um todo (cf. Rm. 3:19; 1Co. 14:21). Uma característica dessas ocorrências é o uso de uma forma de grafo e lego com nomos.

5. A grande maioria do uso Paulino de nomos faz referência a mandamentos, requerimentos e principalmente a um corpo ou sistema de mandamentos ou requerimentos exigidos do homem.

6. Ocasionalmente Paulo usa nomos como referindo-se a vontade de Deus.

7. Para se entender a doutrina da lei em Paulo é vital saber que ele usa nomos referindo-se a lei de Moisés.

8. Lei refere-se a mandamentos mediados por Moisés.

9. A Lei é um todo indivisível (Gl. 5:3).

10. Alguns (e.g., Cranfield) têm dito que Paulo usa nomos com o sentido de legalismo visto que não há palavra grega para tal conceito. Entretanto, a linguagem grega providencia recurso suficiente para expressar esse conceito (cf. Gl. 3:11, 18, 21; Rm. 4:13, 14; 10:3, 5; Fp. 3:9). Geralmente o que leva as pessoas a considerarem tal significado para no,moj é evitar uma avaliação negativa do AT por Paulo.

Lei como AIO: Uma das funções da lei é servir de “aio” até a chegada de Cristo. As traduções portuguesas têm traduzido a preposição grega eis como “para nos conduzir a Cristo” (Gl. 3:24 – ARA, ARC, TB) trazendo a idéia a condução ao invés de tempo. Esse é o texto usado para falar do uso teológico da Lei. Para Calvino, a Lei foi dada para mostrar a necessidade de Deus e, assim, conduzi-las a Cristo. Para que isso fosse verdade era preciso que o verso em questão trata-se da história do indivíduo e não de um povo ou da salvação. E segundo, que a preposição eis não tivesse força temporal. Há, contudo, algumas razões para crermos diferente:

(1) O contexto de Gálatas claramente é histórico e/ou temporal. Paulo faz referência a três estágios na história da salvação: a promessa a Abraão, a Lei de Moisés e a Fé em Cristo. Paulo não está falando da experiência do indivíduo, mas da função da lei na história do povo de Deus. A nuança pessoal que isso possa trazer não é o foco de Paulo – seu foco é corporativo. Provavelmente a palavra “nosso” faz referência a Paulo e seus patrícios judeus e não a Paulo e os irmãos da Galácia. Os versos 23 e 25, ou seja, o contexto imediato, também traz elementos temporais: “antes (pro) que viesse a lei” (v.23); “tendo vindo” (v.25).

(2) A preposição pode ser traduzida pode envolver objetivo ou lugar (“em direção a”, “para”); pode ser um marcador de grau; um marcador de objetivo envolvendo aspectos afetivos e abstratos; pode ser marcador de um ponto de referência e pode está ligada a tempo (“a”, “até”, “em”) cf. BDAG. Como todo contexto geral e imediato é histórico ou temporal, a melhor tradução seria “até” ao invés de “nos conduzir”. O NTLH e a NVI entenderam assim quando traduziu “a lei ficou tomando conta de nós até que Cristo viesse…”.

(3) A palavra paidagogos pode significar “guia”, “guardião”, “líder” (cf. BDAG). Como em toda ilustração, devemos buscar o “ponto de contato” entre a ilustração e o objeto ilustrado (aio e lei). A palavra grega e sua ligação com a palavra portuguesa “pedagogo” pode nos levar a pensar em um professor (cf. KJV, AV). Porém, o paidagogos não ensina (cf. BOICE). Se esse fosse o caso, a palavra didaskalos seria a utilizada. Para Moo (1983, p. 368) paidagwgo,j era alguém que tomava conta da criança, uma babá. Daí a preferência de Keener (2005, p. 546) e Vincent (vol. IV, p. 128) em traduzir paidagogos com “guardião”. Sua função está ligada à custódia e a disciplina e não à educação ou instrução. Em Lysis, Platão revela que o paidagogos “controlava” os jovens, no caso, o próprio Lysis. Na obra de Platão isso é motivo de ironia por parte de Sócrates – um escravo controlando o seu dono. Aristóteles afirma que nossa parte apelativa deve ser controlada por princípios, assim com um garoto deve viver na obediência de seu paidagogos (Nic. Etic. 3.12.8).
Aqui as palavras de Boice nos ajudarão:

O ponto de Paulo é que a responsabilidade cessou quando a criança entrou a completude de sua posição com filho, tornando-se um adulto reconhecido pelo rito formal da adoção por seu pai. “A Cristo” [“nos conduz a Cristo”] não deve ser tomado no sentido geográfico como se o pedagogo estivesse conduzindo a criança a um mestre, como alguns tem implicado. A referência, como no verso precedente, é temporal.

Para Rendall “a posição de uma enfermeira em relação a uma criança aproxima-se mais do que a imagem de um mestre ou tutor ao escritório do paidagogos ( pois ele […] era designado a cuida-las e salvaguarda-las [...]” (RENDALL, 2002, p. 173 – itálico nosso).

A lei então guardava o povo até a vinda de Cristo. Assim, podemos entender primeiramente o limite temporal da lei e sua natureza: guardar ou manter a identidade nacional do povo de Israel.

Conclusão

A lei em algum sentido foi abolida na comunidade cristã (cf. Gl. 3:19, 24, 25 “até”). Dorsey (1991, pp. 325-9) mostra que há vários elementos temporais atrelados à lei. Realmente, na forma escrita, as leis de Moisés foram claramente temporais visto que são impraticáveis em outras realidades devido ao clima (Ex. 29:22); à cultura (Dt. 22:8); à cultura religiosa (muito das regras instituídas aos levitas está diretamente ligada aos povos vizinhos [e.g., altar de holocausto]); à estrutura governamental da igreja ser totalmente diferente de Israel que era uma nação (e.g., leis relacionadas aos reis, às cidades-refúgio; ao tratamento dado aos prisioneiros de guerra, etc.) à negação categórica do NT no tocante a descontinuidade do culto sacerdotal (Hb. 8:18). Como a lei é um TODO, não podemos pensar que somente a Lei sacrificial ou cerimonial foi abolida. Não existe essa lei, existe uma única LEI, a de Moisés.

Não está se afirmando, entretanto, que o cristão está livre de qualquer Lei – existe a lei de Cristo – a lei eterna de Deus Cf. Gl. 2:19-20. A crítica de que, negar o uso da lei mosaica é o mesmo que ser legalista (pois se criará outras leis não expressas nas Escrituras) ou antimonista (lei nenhuma), só deve ser aceita ou confirmada se eu acreditar que a lei de Moisés é toda e a única revelação de Deus aos homens. Temos o NT. Como, então, encarar os preceitos da Lei mosaica? Bem, como toda a Palavra é útil (2 Tm. 3:16), devemos buscar princípios que permeiam os mandamentos.

BIBLIOGRAFIA

BOICE, James Montgomery Boice. Galatians. In: GAEBELEIN, Frank E. (ed.) The Expositor´s Bible Commentary. Grand Rapids: Zondervan, 1984

DORSEY, David A. The Law Of Moses And The Christian: A Compromise. JETS 34/3 September 1991, pp. 321-34.

GUNDRY, Stanley (ed.). Lei e Evangelho – 5 pontos de vista. São Paulo: Editora Vida, 2003, 444p.

MOO, Douglas J. "Law," "Works of the Law," and Legalism in Paul. WTJ vol 45-1, spring 1983, pp. 73-100.

RENDALL, Frederic. The Epistle to the Galatians. In: NICOLL, Robertson (ed.). The Expositor´s Greek Testament, Hendrickson Publishers, 2002, volume III, 547p.

VICENT, Marvin R. Word Studies in the New Tetament, Hendrickson Publishers, IV volumes.

Perfil

Minha foto
Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.