Há mais de dois anos, aqui mesmo
no Arquivo
R, escrevi um artigo sobre
ordenação (link aqui). Essa semana, estimulado pela leitura da autobiografia de Charles H. Spurgeon
(C. H. Spurgeon's Autobiography, Compiled
from his diary, letters, and records, by his wife and his private secretary:
Volume 1, 1898), o tema voltou a ocupar minha atenção.
Meus argumentos e minhas convicções
continuam as mesmas. Aliás, as palavras do príncipe dos pregadores só as reforçaram.
Antes de considerar o julgamento de Spurgeon, é importante ressaltar que sua
crítica à ordenação não era direcionada ou condicionada somente a uma prática específica dos seus dias, mas a qualquer cerimônia aonde ministros de outras
igrejas aprovam ou abonam determinado candidato ao ministério. Em outras
palavras, Spurgeon foi contra a ordenação e, seguramente, seria contra hoje também. Ele se autodesignou “oponente”
desse costume e foi categórico: “Tenho uma objeção resolvida a qualquer
ordenação ou reconhecimento público” (p. 356).
Seguem algumas observações do grande pregador inglês que reforçam o
artigo citado:
<1. Trata-se de uma prática perigosa. Em suas críticas à prática da ordenação Spurgeon diz: “grandes males
tem começos pequenos”. Sua percepção das bases e implicações da prática o levou
a vê-la não somente como uma divergência suportável e/ou inofensiva; antes, como
algo ameaçador. Em uma carta de maio de 1854, ele revela que, dezenas de vezes, expressou, muito calorosamente, do púlpito, seu aborrecimento com tal prática (p. 356). São
várias as razões para tanta indignação. Uma delas: os males da prática da ordenação
tinham se tornado algo “essencial”. (p. 355-6). Nas palavras do próprio
Spurgeon, a prática tinha se tornado uma “lei de ferro” no seu país.
<2. Ameaça a autonomia e autoridade da
igreja local e extrapola os limites da autoridade pastoral. Penso serem essas as razões fundamentais para Spurgeon ver a ordenação como algo perigoso. A ordenação
é baseada em um entendimento equivocado da autonomia e responsabilidade da igreja local, bem como da natureza das relações de autoridade entre os ministros. Segundo Spurgeon: “Toda igreja tem o direito
de escolher seus ministros” (p. 357). Ele denomina a independência da igreja de
“princípio glorioso”. Ele é muito claro ao afirmar que “a igreja é competente,
sob a orientação do Espírito Santo, a fazer seu
próprio trabalho” (p. 356). Para Spurgeon, a ordenação tira da igreja o trabalho
que lhe devido. O que é decidido na igreja local não precisa ser complementado, afirma o pregador. Não importa
se o mundo todo se opõe a decisão da igreja. Para Spurgeon, a ordenação ou o reconhecimento
público nem invalida, nem reforça. Sobre a relação entre os
ministros, Spurgeon entende que são e devem ser aliados, entretanto, nenhum tem
autoridade no território do outro. Spurgeon entendia a prática da delegação de poderes de “ministros para
ministros” como renovação da sucessão apostólica (p. 357). Não que Spurgeon
rejeitasse a autoridade dos seus colegas. Ele entendia que o reconhecimento da
escolha da igreja por outras igrejas e seus ministros era um “ato fraterno” – mas,
somente isso, nada mais. Ele também reconheceu que há superioridade de um ministro para o
outro, porém, em piedade, nunca ex
officio. Quanto à autoridade ex
officio de um ministro sobre o outro,
claramente revelada e reforçada em cerimônias de ordenação, Spurgeon era direto:
“nenhum homem é meu superior” (p. 357).
<3. Cria uma nova classe de ministros
e/ou pessoas. Spurgeon percebeu essa questão
observando os remetentes das cartas. Ele notou que os nomes dos seus alunos seguiam
o tratamento “reverendo” enquanto o seu não. Diante disso, Spurgeon afirmou: “Here are reverend
students of an unreverend preacher (p. 355).
Spurgeon questionou as implicações dessa distinção de tratamento. Uma delas era a de que somente ministros
ordenados poderiam administrar a Ceia do Senhor e o batismo. Ele denominou tal
prática de “papado descarado” (cf. Sword and Trowel Volume 4, 1874, p.
111-17 [Link aqui]). Também questionou
o título de reverendo. O ponto de Spurgeon é: O que tinha acontecido com esses
homens que o faziam agora dignos de tamanho título? Ou, para os pastores
batistas, o que aconteceu de tão importante para você receber o título de “pastor
ordenado”? Ele exemplifica: um homem que por muitos anos foi pregador é normalmente
conhecido por Senhor Brown, mas depois da ordenação ele evolui para Reverendo
senhor Brown. A pergunta persiste: que
mudança importante ele sofreu? Ele cita outro exemplo: um rapaz novo que acabou
de ser colocado no púlpito é chamado de Reverendo Smith. Contudo, seu avô, que
andou cinquenta anos com o Senhor e agora está no céu não tem direito a tal
reverência. O que aconteceu com esse homem que o faziam agora digno do título de
reverendo e seu avô não? O que lhe foi dado nesta cerimônia? Usando as palavras
do grande pregador: “Para que uma imposição de mãos vazias?”. Ora, se nenhum dom
é conferido, para que tal imposição? Não é atoa que Spurgeon recusou veementemente
o título de reverendo. Título esse considerado por ele como um “prefixo
sacerdotal” (Ibid.). Spurgeon
se perguntou: de que mente surgiu tal invenção? Sua resposta é cheia de ironia e
criatividade: Nós suspeitamos que ele viveu na rua romana da Feira da Vaidade (cf
O Peregrino de Bunyan).
<4. A prática pode ser inconveniente. Spurgeon em uma carta revela sua chateação com os conselhos tolos das
cerimônias de ordenação. Não que os bons conselhos eram ausentes, mas para Spurgeon, mesmo
quando os conselhos eram sábios, eram inapropriados na arena pública. Ele afirmou estar disposto a
ouvir conselhos em particular, por
qualquer pessoa, sobre qualquer assunto. Mas não estava disposto a ouvir em público como deveria gastar seu
dinheiro, que devia ser um bom marido e todas as observações absurdas sobre
assuntos familiares e domésticos.
Findo com a citação de uma de suas pregações cujo título era A Verdadeira Ordenação do Ministro:
Nenhuma faculdade, nenhum bispo, nenhuma ordenação humana pode fazer de
alguém um ministro; mas aquele que sofre, como Bunyan, Whitefield, Berridge, ou
Rowland Hill, as lutas de um anseio apaixonado para ganhar almas, pode escutar no ar
a voz de Deus dizendo “Filho do homem, fiz de te um atalaia” (p. 359).