O Silêncio
Existem temas que não podem ser negligenciados e/ou
postergados (mesmo tacitamente) sem que se padeça a pena de ter uma ótica
imprecisa ou opaca dos tópicos que os seguem ou os pressupõem. Em outras
palavras, tópicos precedem outros em necessidade hermenêutica e, por
conseguinte, em importância de apreciação bem como na necessidade de
consciência e aceitação[1].
São os temas fundantes; os pressupostos basilares e/ou gerais – aqueles que
estão mais “distantes” na rede de crenças.
As denominadas “doutrinas da graça” ou os “cinco pontos
do calvinismo” (os cânones de Dort) não se encontram no final da linha na rede de crenças. Elas são precedidas por dois temas fundantes: a Soberania de Deus (SD) e a Responsabilidade
Humana (RH). Responsabilidade no primeiro ponto (depravação total[2])
e soberania nos demais. Nenhum dos dois temas, contudo, recebe tratamento específico nos documentos produzidos na Holanda do século XVII;
antes, são simples e conscientemente pressupostos.
Parte da dificuldade na relação
entre a SD e RH se dá quando lidamos com a realidade antes do pecado. Mais especificamente, sobre a relação entre a origem do pecado (o mal) e Deus. Dort (e
muitos calvinistas[3] e
o próprio Calvino) pressupõe a tensão
e o inescrutável. Ele não tem preocupação
alguma em apresentar qualquer solução. O que se ver, por exemplo, em
textos como Romanos 9.19-20 e a tese do livro de Jó, é que tal postura não
somente é indicada nas Escrituras,
mas é essencial para a apreciação das
ações graciosas de Deus; que existe, sim, uma “fronteira epistemológica” que,
uma vez atravessada, gera a cegueira da graça enquanto nos faz perde-se em abstrações
arrogantes e destruidoras; que o silêncio
não é fruto da fadiga, da desistência frustrante, mas decorre da obediência à revelação.
O silêncio doxológico é a resposta devida diante do inacessível e da tensão.
Nessa primeira parte queremos lidar
com o silêncio. Por que escolher “silêncio”
e não “mistério”? A expressão é inspirada na cadeia de questionamentos
dirigidas a Jó e na pergunta/mandamento em Romanos 9.20. Todos os textos trazem
grandes contribuições para a discussão sobre a relação entre SD e RH e problema
da origem do mal e em todos eles o silêncio
não é somente indicado, é exigido.
Seguem alguns exemplos do chamo de “silêncio calvinista[4]”:
1.
No artigo 14 do 1º capítulo
temos: “Ela [a doutrina da divina eleição] deve ser ensinada com espírito de
discrição, de modo reverente e santo, sem
curiosa investigação dos caminhos do Altíssimo”.
2.
No artigo 18 do 1º capítulo,
diante dos possíveis questionamentos, Dort apela para a soberania de Deus
citando Romanos 9.20 (Mas quem é você, ó homem, para questionar a Deus? “Acaso
aquilo que é formado pode dizer ao que o formou: ‘Por que me fizeste assim?’”)
e Mateus 20.15 (“Não tenho o direito de fazer o que quero com o meu dinheiro?
Ou você está com inveja porque sou generoso?”) e declara: “[...] adorando
reverentemente estes mistérios,
exclamamos como o apóstolo: Ó
profundidade da riqueza [...]” (itálico nosso).
3.
Depois de explicar a
regeneração; de como o homem não tem participação
nela e ao mesmo tempo assegurar que a vontade humana não é apenas acionada ou movida, mas sob a ação de Deus “torna-se ela mesma atuante”, o
documento declara que quando o assunto é a operação de Deus na regeneração, não podemos entender completamente (cf.
3° e 4° capítulo; artigo 13).
4.
No artigo 16 do 1º capítulo
temos claramente a responsabilidade humana: “[pessoas que se sentem fracas e
sem fé] devem continuar diligentemente
no uso desses meios, desejando fervorosamente dias de graça mais abundante e
esperando-os com reverência e humildade”.
5.
No artigo 16 do 3º e 4º
capítulos temos a soberania de Deus em ação na liberdade humana: “[...] a graça
divina da regeneração não age sobre os homens como se fossem máquinas ou robôs, e não destrói a vontade e as suas propriedades, ou a coage violentamente” (itálico nosso). Ele
declara, mas não explica a tensão
existente. Esse silêncio deixa claro que para Dort não há espaço para
especulação filosófica.
Dort, portanto, entende e argumenta em favor do reconhecimento de mistérios não revelados. Pensando no
pecado de Adão; da sua responsabilidade e dos seus filhos corrompidos, Dort
simplesmente se recusa a dar “um passo para trás” e perguntar “por que o pecado
entrou no mundo uma vez que Deus é soberano?”. Ou, “Como Deus pode ser
completamente soberano sobre cada decisão humana (como veremos logo mais)
e ainda assim cada decisão humana ser
realmente responsável?”
Tal postura reflete um documento bem mais antigo – as 97 teses de
Lutero (que antecederam as suas famosas 95 teses[5])
onde ele combate a metodologia
teológica onde Aristóteles reinava – o escolasticismo. Nas palavras de Lutero
(2004, 2:17-18):
Ninguém se torna teólogo a não ser sem
Aristóteles [...] Dizer que um teólogo que não é um lógico é um monstruoso
herege, é uma afirmação monstruosa e herética. [...] Nenhuma fórmula
silogística subsiste em questões divinas [...] Se uma fórmula silogística
subsistisse em questões divinas, o artigo sobre Trindade seria conhecido, em
vez de ser crido.
O mesmo pode-se dizer de Calvino. Sobre o porquê Adão não
perseverou em obediência, Calvino declara nas Institutas (I.XV.8): “No entanto, por que não quis sustentá-lo com o poder
de perseverança, isso está oculto em
seu conselho secreto. A nós, realmente nos cabe saber com
sobriedade” (negrito nosso).
Ainda sobre o pecado de Adão, Calvino declara:
Que
aqui ninguém vocifere dizendo que Deus poderia ter acudido melhor à
nossa salvação, se houvesse impedido a queda de Adão, visto que essa objeção,
em vista da curiosidade em extremo ousada que envolve, não só deve ser
abominada pelas mentes piedosas, como também pertence ao mistério da predestinação [...][6].
Lidando especificamente com a
relação entre o pecado do homem e a soberania de Deus, John Piper em vários
momentos entende seus limites. Sobre como o pecado entrou em Satanás, Piper
(2015:40) é simples e direto: “[...] não sabemos. Deus não nos contou”.
Comentando Provérbios 16.4 (“O Senhor faz tudo com um
propósito; até os ímpios para o dia do castigo”),
diz: “Deus assim agiu de forma misteriosa
a fim de preservar a responsabilidade do perverso, e ao mesmo tempo a
impecabilidade do seu próprio coração. Devemos nos humilhar se não conseguimos explicar como isso
acontece” (2015:47 – itálico nosso).
Michael
Horton (2014:64 – itálico nosso) declara em A
Favor do Calvinismo:
Não é a
soberania de Deus que mantém a liberdade humana aprisionada, mas o pecado.
Aqui, também, a teologia confessional Reformada é obrigada a manter juntas duas
aparentemente conflitantes: Deus decretou tudo o que vais acontecer, embora
isso, de modo algum infrinja na liberdade de suas criaturas. Seria mais fácil,
é claro, para intelectos finitos
resolver esse dilema na direção ou da autonomia humana ou do fatalismo, mas a
Bíblia não dá essas opções. É um paradoxo
para a mente humana, e assim permanecerá até mesmo na glória.
O
problema do mal (especificamente sua origem)
permeia toda essa questão. Como somos responsáveis pelo mal quando o Senhor
determina todas as coisas? O problema do mal passa pela explicação da relação
entre responsabilidade, liberdade, mal e soberania divina. Frame (2006:105-6 –
itálico nosso) faz coro a “postura silenciosa” reformada citada acima:
Visto
que o cristianismo é uma revelação de Deus, é de se esperar que inclua algumas
coisas que transcendem o nosso entendimento – alguns mistérios insolúveis.
Credito que o problema do mal seja um desses mistérios [...]. Alguns teólogos
parecem estar dispostos a solucionar o problema do mal [...]. Será que não
seria melhor deixar esse problema sem solução, em vez de recorrer a meios tão
drásticos?[7]
Não haverá um momento em que deveríamos ficar em silêncio e simplesmente
acreditar na palavra de Deus?
Sobre a
relação entre SD e RH Frame (2006:74 – itálico nosso) declara: “É importante
entender a relação entre os dois o mais claramente possível, mesmo que alguns
dos seus aspectos seja profundamente
misteriosos. Porém, não podemos colocá-los em oposição um ao outro”.
R. C.
Sproul (1998:24, 26, 31 – itálico nosso) é direto:
Por anos
procurei a resposta a este problema [problema do mal], pesquisando as obras de
teólogos e filósofos. Encontrei algumas tentativas inteligentes de resolver o
problema mas, até agora, nunca encontrei
uma resposta profundamente satisfatória. [...] Adão e Eva não foram criados
decaídos. Eles não tinham natureza pecaminosa. Eram boas criaturas com uma
vontade livre. Ainda assim, escolheram pecar. Por quê? Não sei. Nem encontrei ainda ninguém que saiba. [...] Não tenho
ideia por que Deus salva alguns e não todos. Não duvido por um momento que Deus
tenha o poder de salvar todos, mas eu sei que Ele não escolhe salvar todos. Realmente não sei por quê.
Em outra
obra Sproul (1997:92) declara: “É possível inventar vários tipos de explicação
que talvez impressionem as pessoas pelo seu engenho, mas todos eles têm os seus
pontos fracos. A verdade cristã não é promovida pelo raciocínio sofístico
arguto”.
N. T.
Wright (40, 52, 63– itálico do autor) faz coro ao silêncio. Seguem três citações:
O que
nossa tradição filosófica ocidental nos leva a esperar e a buscar é uma
resposta a questão: o que Deus pode dizer
sobre o mal? Queremos uma explicação,
saber o que o mal é, porque ele está presente desde o princípio (ou, pelo
menos, quase do princípio), por que teve permissão para continuar existindo e
quanto tempo ainda vai durar. Essas questões aparecem na Bíblia, mas, para
nossa frustração, não recebem respostas completas e com certeza são respostas
que não agradariam aos filósofos da atualidade
Dietrich
Bonhoeffer afirma que o pecado fundamental da humanidade foi colocar o
conhecimento do bem e do mal acima do conhecimento de Deus. Esse é mais um dos
mistérios assombrosos de Gênesis 3: deve existir alguma ligação relevante entre o que entendemos por bem e mal e o
que Deus entende, senão, estaríamos realmente na escuridão moral. Ainda assim,
serve como aviso para não sermos taxativos ao declarar o que Deus deveria, ou
não, fazer.
[A]
força personificada do mal, satanás, é importante, mas não tanto. A origem do
mal permanece um mistério, e, quando aparece, satanás fica restrito a certos
limites. [...] o tempo todo fica evidente a responsabilidade humana pelo mal.
Jonas
Madureira (2017:181 – itálico nosso) segue a mesma “estrada misteriosa”: “Fato
é que nem a apologética nem a teodiceia são capazes de oferecer qualquer explicação específica sobre a razão
de Deus permitir o mal”. Sobre a compatibilidade dessas verdades seguem as
palavras de Heber Campos (2001:291): “Não
cabe a nós explicar essas coisas no sentido mais profundo, mas cabe-nos
afirmar a necessidade do compatibilismo. […] uma ação é livre mesmo que seja
causalmente determinada”.
A
citação que sintetiza perfeitamente tudo que foi colocado a cima vem de J. I.
Packer (1990:17-8): “Para nossas mentes finitas, naturalmente, trata-se de algo inexplicável.
Parece-nos uma contradição. […] uma antinomia não é nem dispensável, nem
compreensível. […] É algo inevitável e insolúvel. Não a inventamos nem podemos
explicá-la”.
A Tagarelice
Entre os
arminianos a postura é completamente diferente. Exemplifiquemos com a obra Contra o Calvinismo de 2013 de Roger
Olson. Uma de suas críticas a Edwards sobre a relação de Deus com o pecado
original é a seguinte: “Edwards em nenhum lugar explica a origem da disposição má de Adão que o tornou culpado, e
não Deus” (2013:149). E ainda: “A pessoa não pode abraçar as duas [SD e RH] sem
que caia em contradição. Apelar para
o mistério não é apropriado”
(2013:153 – itálico nosso). E, “Parece que a explicação calvinista está dando
voltas, andando em círculos [...]”. O que o “silêncio calvinista” não é uma
fuga da problemática, nem fruto da indiferença e do obscurantismo – é
obediência à revelação. É convicção exegética (cf. uma análise de Romanos 9 em
vídeo).
O papel
das implicações ajuda-nos a entender as diferentes metodologias teológicas. Depois
de citar uma “implicação lógica” do calvinismo do escritor Jeremy Evans onde
esse declara: “Se Deus precisa da criação para exemplificar estas propriedades
[justiça, ira], então os humanos podem corretamente questionar se Deus estava
livre em Seu ato de criação”; Olson declara: “Claro, poucos calvinistas irão
colocar a questão dessa forma, mas é a consequência
lógica e necessária’” (2013:147 –
itálico nosso). Interessante que o próprio Olson (2013:13) afirma que não
podemos confundir as declarações de uma doutrina com suas implicações. Contudo, o próprio Olson critica as implicações (que
toma como necessárias) do calvinismo. O que está acontecendo aqui? Olson critica
o calvinismo por meio de implicações. Contudo, tais implicações não atingem o
calvinismo, pois elas são invasões dos limites
que o sistema reconhece (sobre bases exegéticas) e que Olson tem
consciência como na citação acima.
Olson
(2013:272) faz uma distinção entre contradição e mistério. O primeiro é
impossível e o segundo como “algo além da nossa completa compreensão”. Cita
como exemplo de mistério a Trindade. Ele entende que existe uma outra categoria
– o enigma. Sobre a eleição ele diz “Apelar para o mistério é incorreto; isto
não é um mistério, mas um enigma” (2013:278). E ainda: “Não estou contente em
deixar a pergunta do ‘por quê’ na esfera do mistério”
(2013:97 – itálico nosso).
Assim, aonde
os calvinistas param – evitando a “consequência
necessárias” de Olson – o arminiano quer continuar
aplicando a lógica aristotélica ao sistema calvinista. Entende-se, pois, que o desacordo
entre arminianos e calvinista não está somente nas conclusões díspares sobre
determinadas temáticas, mas na própria metodologia;
ou, sendo mais específico, no campo de estudo. Os arminianos entram em áreas que Dort simplesmente
pressupõe (ou seja, não discute) e
entende que não devem ser exploradas.
Uma delas (creio ser a mais importante) é a relação de Deus com o mal ou a
tensão entre SD e RH. O problema é que a metodologia deve ser fruto do texto e
não o contrário. O calvinismo não vai além por um motivo simples: o texto
sagrado proíbe. Sua metodologia exegética é determinada por uma declaração didática
e direta: “Quem é você, ó homem, para questionar a Deus?”.
Continua...
[1] Não necessariamente via apologética e
consciência analítica, pois alguns tópicos não podem ser analisados em si, somente aceitos.
[2] A escolha por essa expressão sintética bem
como das outras se dá pelo uso constante. Todas as propostas têm suas
limitações como toda expressão sintética. “Expiação Limitada” visa revela que o
propósito da expiação tinha um número “limitado” de pessoas. “Expiação Eficaz”
enfatiza o poder da morte de Cristo. Ambas estão corretas. O verdadeiro sentido
de cada ponto só é alcançado debruçando-se sobre todos os cânones e não sobre
uma expressão somente.
[3] Exemplos: Charles Spurgeon, Wayne Grudem, Heber
Campos, Augustus Nicodemus, J. I. Packer; John Feinberg; John Piper; D. A.
Carson.
[4] Numa análise histórica mais rígida, a
expressão “calvinismo” surge como uma referência a doutrina da ceia do Senhor. Segundo
Alister McGrath (2004:231): “O termo ‘Calvinismo’ parece haver sido introduzido
pelo controversista luterano alemão Joaquim Westhal para se referir às
perspectivas teológicas e, especificamente, àquelas relacionadas aos
sacramentos”. “Calvinismo”, pois, nasce em contraste com “luteranismo”. Ainda
segundo McGrath (2004:231), “A introdução do termo ‘calvinista’ aparenta ter
sido uma tentativa, da parte dos alarmados luteranos alemães, no sentido de
estigmatizar e desacreditar as ideias de Calvino como sendo uma influência
estrangeira na Alemanha”. A expressão passa a ser usada de forma específica em
suas inúmeras manifestações locais tornando o termo vago. Aqui uso a expressão
como equivalente às convicções do Sínodo de Dort ou ao monergismo. Citaremos
outros estudiosos que defendem o silêncio,
mas não abraçam o sistema com apresentado em Dort (e.g., N. T. Wright). Do
outro lado reconhece-se a existência de estudiosos identificados com o
calvinismo (ou a teologia reformada) que consideram o apelo ao mistério, o silêncio,
o paradoxo, ou a antinomia uma expressão de falsa piedade porque a Bíblia nos
revela a origem e o propósito do mal (e.g., Gordon Clark).
[5] Segundo Joaquim Fisher (em LUTERO, 2004:2:13):
“Lutero percebeu que a teologia estava acorrentada no cativeiro da escolástica,
impossibilitada de articular adequadamente a questão essencial da fé cristã, ou
seja, graça e justificação, Deus em seu relacionamento com o ser humano e
vice-versa [...] A teologia precisava ser libertada, sobretudo da ‘ditadura’ da
Aristóteles. [...] O método teológico alternativo era o do paradoxo”.
[6] Ronald Wallace (2003:197 – itálico nosso) nos
lembra que “Era característico de Calvino, em sua submissão à Palavra de Deus,
jamais modificar um aspecto claro da verdade revelada, mesmo quando o
reconhecimento total dela levava a uma tensão
aguda com outros aspectos da Palavra. Alister McGrath (194) descrê assim a
visão de Calvino sobre a predestinação: “A predestinação é algo que deveria
induzir um senso de temor em nós. O decretum
horrible (III.xxiii.7) não significa “horrível decreto”, como uma tradução
grosseira, insensível às nuances do latim, poderia sugerir; antes significa um
decreto que “inspira temor” ou “terror”.
[7] Uma referência a solução do teísmo aberto.