Ponderações na hermenêutica de J. S. Croatto.

Todas as ponderações feitas sobre J. Severino Croatto foram extraídas de sua obra Hermenêutica Bíblica: para uma teoria da leitura como produção de significado. Tradução: Haroldo Reimer.

A linha hermenêutica seguida por Croatto

Os elementos básicos de qualquer abordagem hermenêutica são: o papel do autor, do texto e do leitor e sua relação com o significado. 1) Quanto ao autor: para Croatto, o autor está morto. A intenção autoral, portanto, não determina o sentido e nem sequer deve ser encontrada; ele morreu. Restaram o texto e o leitor. 2) O texto: trata-se de uma leitura (enclausuramento) de acontecimentos polissêmicos que, devido a morte do emissor no processo de tradição (transmissão) torna-se polissêmico. 3) Leitor: parte de sua realidade buscando novos sentidos e leituras. Leitura é produção de sentido ou “fechamento de sentido”. Por suas características supracitadas enquadramos sua hermenêutica na chamada “Hermenêutica da Suspeita” (cf. LOPES, Augustus N. A Bíblia e Seus Interpretes. p. 236-7).
A “autonomia do texto”

Antes de nos atermos a “autonomia do texto”, precisamos apresentar a visão de Croatto sobre o fenômeno da “fala”, seu sentido e sua relação com a “língua” e o “texto”.

Seu entendimento sobre “texto” decorre da distinção feita pela lingüística entre “lingua” (langue), “discurso” (parole) e “texto”. Em toda língua (sistema de leis e signos que regula a gramática e a sintaxe) há um “potencial polissêmico” que é “fechado” ou “enclausurado” (tornando-se monossêmico) no ato do discurso (fala, langue).

O sentido de um determinado discurso é “fechado” ou “enclausurado” porque há um contexto e/ou horizonte de compreensão comum ao emissor e ao receptor (narratário) que permite fazer coincidir a referência ou a denotação. Neste quadro não há autonomia do texto; antes, “fechamento” de sentido. Esse fechamento se dá na distanciação de língua e discurso – langue e parole – polissemia e monossemia. Discurso é “dizer algo sobre algo” (p. 11), caso haja polissemia, não há comunicação ou entendimento. Que fala toma da “língua” todo seu potencial polissêmico e o enclausura para comunicar.

A “separação” entre língua e discurso não é a única na linguagem. O “discurso” pode tornar-se “texto”. Temos então a segunda distanciação. Para Croatto “texto” é um “discurso cristalizado” e “transmitido” (p.11). No “discurso” temos “linguagem inlocucional” (entonação, gestos) e locucional (como se diz); o mesmo não acontece no “texto”, pois o primeiro interlocutor já não está mais presente. Enquanto o autor do “discurso” nunca morre porque está presente fisicamente, o mesmo não se dá com o “texto”. O autor está morto. E só ficou o “texto”, e semelhante à “língua”, polissêmico. Como o autor não está presente para “fechar” o sentido, o texto agora não tem dono; é autônomo.

Ora, se o autor não está presente, só temos o “texto” e seu “novo” interprete condicionado ao seu contexto histórico-social. Há, pois, uma altercação de contextos e/ou horizontes. Agora temos dois mundos – o do texto (autônomo) e do interprete. E, nas palavras de Heidegger, o “estar-em” o mundo condiciona a interpretação. “Substitui-se o horizonte finito do autor pela infinidade textual” (p. 13).

Leitura como uma produção de sentido

Para entender leitura como produção de sentido, faz-se necessário uma palavra sobre a relação entre o autor e o sentido; a natureza do texto e o ato da leitura. Segue, pois:

1. Autor e Sentido: Para Croatto “sentido” não é algo objetivo e particular que pode ser encontrado através da habilidade do uso de recursos filológicos e históricos. “Sentido” não pode coincidir com intenção autoral. O autor está morto. Tentar “fechar” o sentido de um texto é vão e irreal.

2. A Natureza do Texto: Todo texto é polissêmico. Não se lê sentido, lê-se texto, que por sua vez produz sentido. “A linguagem […] combina tantos elementos sêmicos que nenhuma análise pode manifestá-lo por completo” (p. 14 – itálico nosso). “Toda leitura é produção de discurso e, portanto, de sentido” (p. 14). O texto sempre estará pronto a um novo sentido, recriando constantemente sua mensagem.

3. O Ato da Leitura: Leitura é “seleção de códigos”. O texto é uma estrutura de códigos polissêmicos que insta por produção de sentido. “O discurso coloca em jogo uma pluralidade de códigos que cada leitura [interprete] seleciona e organiza” (p. 15).

4. Conclusão: Texto polissêmico; autor morto e leitura como seleção de códigos segue uma apropriação e/ou produção de sentido determinada pelo leitor. Sentido produzido não é uma repetição do primeiro sentido, mas um esgotamento de sentido.

A “reserva de sentido” do texto.

Parte fundamental sobre essa questão foi colocada na questão anterior. Completemos a: Todo texto tem um “adiante”. Pela própria natureza ou condição lingüística, nunca um texto será explorado na sua totalidade. Sempre poderemos fazer “outras leituras”. Para Croatto Lucas 24, por exemplo, é uma releitura de Isaías 53, que por sua vez é produto de outra leitura. Isso se dá não devido a ambigüidade do texto, mas porque é “suscetível a dizer muitas coisas ao mesmo tempo” (p.14 – itálico nosso), afirma Croatto, usando as palavras de J. Greimas.

É importante a ressalva de que “Reserva de Sentido” não constitui o mesmo que “significa qualquer coisa”. Nas palavras de Croatto, “um texto diz o que permite dizer. A sua polissemia surge de sua clausura prévia” (p. 47).

A clausura e a polissemia no “processo hermenêutico”.

Para Croatto há uma alternância entre a polissemia do texto e a monossemia da leitura no processo hermenêutico. Ou seja, se por um lado todo texto é polissêmico; do outro, toda leitura é “enclausuradora”, pois todo interprete procura esgotar o sentido do texto não permitindo assim outra “leitura”.

Entre o discurso e sua cristalização (o texto) há uma “distanciação” que converte monossemia em polissemia (desenvolvido na questão 2). O mesmo acontece (numa ordem inversa) na relação entre texto e leitura. Se em um texto tem vários sentidos, o mesmo não se dá com a leitura. Essa leitura, por sua vez, se tornará um “texto” aberto a vários sentidos e releituras futuras visto que o autor-interprete-leitor estará morto e/ou não presente. Essa distanciação progressiva do sentido original gera uma “convergência de leituras” e/ou “acumulação de sentidos” cumprindo assim uma função interpretativa e/ou hermenêutica.

O processo hermenêutico na história do cânon.

Todo texto parte de um acontecimento. Ao narrar um fato para celebrá-lo efetua-se uma seleção privilegiando uma experiência e deixando outras. Por ser uma interpretação, é uma forma de “clausura de sentido”; caso contrário não seria inteligível. Em um segundo momento essa interpretação torna-se tradição. E novamente teremos a distanciação entre fato e primeira interpretação abrindo esse texto a novas releituras.

Sobre o relato (texto) bíblico que decorre dos acontecimentos que o excitaram Croatto diz: “A redação atual dos relatos bíblicos tem a vantagem hermenêutica de estar muito distante dos acontecimentos” (p. 24-5 – itálico nosso). Essa interpretação por sua vez se cristaliza ou se enclausura necessitando outras interpretações-leituras. Temos novamente a alternância polissemia e monossemia – acontecimento e interpretação.

Essa cadeia hermenêutica: acontecimento polissêmico > Interpretações monossêmica > polissemia > tradições monossêmicas “chega a um momento de maior tensão em seu crescimento de sentido: ou se divide ou se enclausura em um cânon, o qual também excluirá aspectos da tradição, o que equivale a originar alguma divisão” (p. 27). O Cânon é um fenômeno de clausura que exclui outras leituras de uma tradição antecedente. “O acontecimento-sentido está recolhido agora em um texto-sentido que tem a força de ser uma Escritura” (p.28). A Bíblia, pois, antes de ser “palavra de Deus” foi “acontecimento de Deus” (p. 26).

A pretensão do cânon de fechar o sentido é irreal e ilusória, pois no mesmo instante que enclausura, pressiona a polissemia do acontecimento e do próprio relato. É impossível deter a releitura e/ou interpretação (e.g., comentários; os pais da igreja). “O processo interpretativo não pode ser fechado” (p. 29). “A história do cânon das Escrituras é parte de um processo hermenêutico e este é parte da história das tradições” (p. 29).

A “fusão de horizontes”.

O tema “fusão de horizonte” surge no contexto de pertinência da palavra de Deus para diferentes classes sociais. Se um dos principais “eixos hermenêuticos” da Escritura é o da libertação da opressão; como ficam os ricos em relação às Escrituras? Primeiramente Croatto deixa claro que a Bíblia pode-se dirigir a todos. Isso se dá porque “cada classe social é interdependente com a outra”. Por outro lado, para Croatto “a Bíblia como totalidade, […] tem uma incrível propriedade de ser escutado e compreendido pelos carentes desse mundo” (p. 38).

Para Croatto a classe social de uma pessoa afeta sua visão das Escrituras porque “cada práxis constitui um horizonte de compreensão” (p. 38 – itálico nosso). Como Horizonte de produção de sentido do emissor da Bíblia é equivalente ao horizonte de compreensão dos humildes (oprimidos) da terra, a palavra torna-se mais pertinente para estes. Há um marco referencial comum entre emissor e receptor. Os horizontes se fundem.

A intertextualidade e intratextualidade da Bíblia

Intertextualidade faz referência à relação entre textos enquanto intratextualidade diz respeito à junção de textos formando um só. Pressupondo como corretas as reconstruções da formação dos textos feitas pela crítica histórica somando-as às suas convicções lingüísticas (e.g., morte do autor), Croatto conclui que a Bíblia é a conversão à intratextualidade de várias tradições díspares (intertextualidade), interpolações e acréscimos dando a idéia de um livro só. Falar de Antigo e Novo Testamento, portanto, pode ter sua utilidade, porém aniquila o esforço da igreja em “construir” um único texto (intratextualidade).

O “eixo semântico”.

Entende-se que a Bíblia (palavra de Deus) originou-se na gênese do povo de Israel em um processo de libertação da opressão do Egito (acontecimento de Deus). Esse tema fomentador da “palavra” delonga-se até o Novo Testamento com a mensagem salvífica de Jesus aos oprimidos de qualquer espécie. Ou seja, mesmo com a transposição de contextos, leituras e releituras, a mensagem de libertação ecoa em todo registro bíblico. Como a formação do cânon da Bíblia é uma “palavra” enclausuradora de sentido em um único texto (intratextualidade), é possível reconhecer orientadores de produção de sentido. Esses são os chamados “eixos semânticos” ou “centros de gravidade”. Além de “libertação”, há vários outros “eixos semânticos” (e.g., justiça).

A Bíblia é a nossa palavra de Deus” segundo o conceito do “processo hermenêutico”.

Para Croatto o processo hermenêutico infindável de alternância polissemia-monossemia elimina da Bíblia o status de “depósito fixo de significado”. Antes, ela é uma reserva inesgotável de sentido. A cada nova leitura há uma “convergência de leituras” e/ou “acumulação de sentidos”. Como “reserva de sentido” a Bíblia não “diz”, ela continua “dizendo” para mim, porque a “Escritura se faz Palavra, a Palavra se faz Escritura” (p. 48). Nesse sentido a Bíblia é minha palavra de Deus porque parto do meu horizonte vivencial.

Crítica a Croatto:

1. A hermenêutica de Croatto nega o sentido único defendido pelos reformadores. Para ele todo texto é polissêmico e produtor de sentido.
2. A hermenêutica de Croatto nega o sentido como vinculado à intenção do autor. Para Croatto o autor do texto morreu. Só temos o texto e o leitor.
3. A doutrina da inspiração é negada por Croatto ao entender que a Bíblia tem contradições e ao negar seu caráter sobrenatural e autoritativo.
4. Diferente dos reformadores, Croatto entende que nunca podemos “extrair” o sentido do texto (exegese); mas entra-se no texto (eisegese) a partir do horizonte vivencial do leitor. Nunca podemos “tirar” objetivamente do texto a intenção do autor.
5. Como obra descritiva do processo hermenêutico Croatto é preciso em muitos aspectos. Muito da hermenêutica pratica no dia a dia é mais produção de sentido do que extração de sentido.

Perfil

Minha foto
Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.