Para Ele

Nos últimos anos escolhi olhar menos para mim. Era do tipo que geralmente via o outro (ou “semelhante”, como queira chamar) como um tipo de invasor escuso. Eram como inimigos – ameaças. Meu primeiro, segundo, terceiro... olhar era sempre de suspeita. Contudo, dar atenção para as pessoas tem trazido resultados surpreendentes – diria até, assustadores. Todos, positivos, claro.
O ato inaugurador dessa minha nova fase se deu dentro de minha própria casa – com os meus. Foi simples, corriqueiro e ordinário; talvez imperceptível para você que ignora a história do meu egoísmo nada tácito: calabreei manteiga no pão do meu filho e o entreguei carinhosamente. Tão somente isso. Nada a mais. De volta recebi um sorriso tímido e doce. Ele sequer revelou seus pequenos dentes de leite. Sim, era um sorriso. O cantinho da boca ficou delicadamente suspenso. Mais do que a boca, seu olhar sorria. Sim, era um sorriso autêntico. Estou certo disso. Era um sorriso para mim; no que sorri para ele.
Em minha nova jornada, em particular, depois de ajudar uma senhora idosa em um supermercado, fui surpreendido com uma pergunta vinda de sua boca frágil e cansada acompanhada de uma voz fraca e trêmula; contudo, profunda: “Por quem o senhor faz isso?”. No que respondi de chofre: “Pela senhora, claro!”. Olhando profundamente em meus olhos, passando a mão no meu rosto, disse amorosamente: “Está certo disso meu filho?”. Ela permaneceu em silêncio com os olhos fitos nos meus. Não havia desejo de resposta; somente que eu conduzisse a pergunta para terra da minha alma visando germinar bons frutos.
Para quebrar o silêncio atordoante respondi secamente: “Por ele! Faço o que faço por ele”. Seu olhar, contudo, revelava claramente desconfiança e, ao mesmo tempo, amor. Com um olhar enigmático, mas com indícios suaves de ironia ponderou: “Espero que o ‘ele’ que você fala seja muito especial, meu querido. Digo isso porque se me conhecesse e estivesse fazendo isso por mim, saberia que está perdendo seu tempo”.
Duas questões me assolavam a mente depois daquele dia: “Por que ela não me perguntou o ‘porquê’ eu faço, mas por quem?” e, afinal, “qual a identidade do “ele” em minha instintiva resposta?”. Fato é que a pergunta voltou a ser emitida por outras bocas. Crianças, jovens, amigos, pessoas estranhas faziam eco às palavras da velhinha do supermercado: “Por quem?”. “Por ele” eu sempre respondia. Sabia, contudo, que se minha resposta seguisse uma pergunta sobre a identidade do “ele”, o silêncio constrangedor seria minha única resposta.
Por um tempo abandonei a busca da identidade do meu personagem misterioso – criado (ou simplesmente percebido) e ignorado por mim. Passei a me concentrar em sua pessoalidade. “Fazemos coisas sempre para alguém?”, perguntava-me. O tom pessoal da pergunta me incomodava. “Não poderia simplesmente estar fazendo por uma razão qualquer?”, interpelava-me.
Em minhas considerações caminhei pela fisiologia, filosofia, história e a psicologia. Na fisiologia percebi que nossos olhos apontam para os outros e não para nós mesmos. O “encaixe dos diferentes” da anatomia sexual revelou-se um sinal claro de dependência – de completude na união e carência na separação. Além disso, nascemos da união de dois. Aprendemos a andar, falar e as coisas mais básicas com os outros. Também percebi que existem semelhança entre nós e outros animais; porém o abismo é real e brutal. Parte dele se dá pela ausência de pessoalidade dos nossos “semelhantes”. Na História dei voz aos mortos e valorizei a tradição – a voz do outro. Na psicologia aprendi que falar com o outro é um caminho necessário para se reconhecer e se entender. Na filosofia entendi não posso ser a fonte do sentido da vida. O fato é que o outro sempre estava lá. Seja para ajudar, repartir ou ser o agente direto da angústia; ele sempre se fazia presente. E até em sua ausência, sua presença se fazia presente no desejo de partilhar da companhia de alguém – de uma outra pessoa. A solidão é o grito da alma pelo outro. Hoje, fico pasmo como as pessoas fogem da pessoalidade enquanto despersonalizam pessoas e ao mesmo tempo não conseguem fugir dela quando personalizam as coisas.
Minhas ponderações sobre essa “onipresença da pessoalidade” me envergonhavam profundamente. À medida que cavava mais fundo começava a ficar clara a identidade (antes inconsciente) do meu personagem – o alvo das minhas boas ações. Depois de um tempo não resisti. Lá estava ele. Era clara a sua identidade. As pessoas o nomeiam de “orgulho”, outras de “egoísmo”, mas depois da pergunta no supermercado, acho tais expressões por demais impessoais. Denomino-o de “eu”. Assim, o “ele” de “para ele” era na verdade o meu “eu”. Quando achava que olhava para o outro, visava somente a mim mesmo. A mudança descrita nas primeiras linhas desse texto não era genuína. Era somente o meu eu transmutado ainda com toda sua força narcísico-destrutiva. O prazer da boa obra e do “obrigado” que a seguia era o prazer de ser visto e adorado. Meu egoísmo extravagante havia se velado vestindo-se de boas obras. Meu orgulho se fantasiou de altruísmo. Menti para mim mesmo e tratei os outros como coisas.
Hoje a pergunta da velhinha do supermercado ainda reverbera em meu coração. Sim, sempre fazemos algo para alguém. “Para quem?” é a grande pergunta. Garanto a você que será “para ele”. Só espero que o seu “ele” não seja o seu “eu” ou ainda um “tu” que te seja igual. Quem é o teu “ele”? Tem que ser uma pessoa, mas tem que ser mais do que isso.

Um Velho Solitário

Conheci um velho solitário. Sim, sei que “velho” é uma descrição assaz penosa – evitada, substituída por eufemismos e, hoje em dia, até proibida, mesmo que veladamente, de se pronunciar. Mesmo com um artigo prefaciando-a e substantivando-a, ela sempre trará forçosamente sua carga qualificativa e adjetival carregada e negativa. O qualificativo que a segue, por sua vez, – “solitário” – vem saturar o quadro com tintas ainda mais sombrias – porém, reais, conscientemente intencionais e escolhidas sem pressa.
Todos os dias, a caminho dos meus afazeres diários, já diante da casa de número 71, o aroma de tabaco queimado anunciava que certamente ele já estaria contemplado ou lamentando (não sei ao certo) a criação e o Criador. Como de costume, Seu Ermo, morador da casa 67, sentava numa surrada e encardida poltrona na área de sua casa (não gostava de cadeiras de balanço, pois lhes davam náuseas) antes que os primeiros raios da manhã vencessem as densas nuvens.
Meu primeiro contato com ele se deu com o convencional menear suave vertical, quase imperceptível, de cabeça. Ele na sua poltrona e eu caminhando na calçada (a casa de Seu Ermo não tinha muros). Tomei a iniciativa, no que fui pronta, amorosa e reverentemente respondido. Nunca esquecerei aquele olhar. Era um misto de firmeza, sobriedade, paz e mistério. Se a verdade fosse uma pessoa (quem disse que não é?), ficaria à vontade naquela área com ares sorumbáticos cheia de folhas secas – era sempre outono na casa de Seu Ermo.
Isso se deu no dia da minha mudança para a pequena cidade de A... Morávamos na mesma rua. Somente cinco casas nos separavam. Eu, minha esposa, meus três filhos passávamos pela rua a pé (prefiro caminhar) no que me deparei com uma cena que testemunharia ainda muitas vezes: Seu Ermo, sua poltrona, seu cachimbo e as incansáveis folhas secas ao vento em volta seus pés.
Nosso segundo “encontro” se deu na padaria do bairro. Ele não me viu. Postei-me cuidadosamente como observador visando não ser o observado. Vi-me parado – hipnotizado. Cena corriqueira: um velho comendo. Porém, nesse dia em especial, todas as nuances da velhice e da solidão ficaram em alto relevo aos meus olhos. A roupa de fibras gastas, amarrotadas, encardidas e fora de moda denunciavam o abandono. A lentidão e o esforço para trazer o alimento à boca, a mastigação incansável e quase ineficaz pulverizaram todo sinal de encanto pessoal. O alimento não parecia ser um agente de prazer, mas um inimigo a ser vencido. A indiferença dos que o cercavam e o seu olhar desfocado faziam daquela mesa um cenário à parte. Os calcanhares ressecados e rachados e as unhas dos pés quase ultrapassando os limites do que restava de uma sandália de couro realçavam a melancolia daquela visão.
            Aquele violento espetáculo me estagnou. Era só eu e o velho – nada mais. Fui arrancado dos turbilhões de pensamentos desconexos pelos gritos do padeiro:
– O que o senhor deseja? Senhor, por favor, o que deseja?
– Sim...é...claro...é...como?...claro...oito pães e um litro de leite, por favor – tentava me recompor.
– O senhor conhece aquele idoso? – perguntei despretensiosamente ao padeiro.
– Sim, claro, é o senhor Ermo.
– O que o senhor sabe sobre ele?
– O que sei é o que quase todo mundo aqui da cidade sabe, ou seja, não muito. Sabemos que vive só, que gosta muito de leitura, artes; como quase todo velho, toma muitos remédios, adora tapioca com café, fuma com classe, não tem dinheiro para seus lanches (por isso senta aí e espera a bondade dos outros) e, como ele mesmo diz, possui a sinceridade que só um velho solitário pode ter.
            As palavras “gosta de leitura e artes”, “sinceridade” e “fuma com classe” me arrebataram. “Blend poderoso. Preciso conhecê-lo” pensei comigo mesmo.
– Ele vem sempre aqui? – perguntei como quem joga conversa fora.
– Sim. Todo final de tarde ele senta e, como ele mesmo diz, espera que “os olhos do próximo estejam funcionando. Pois, olhos saudáveis sinalizam misericórdia à vista”.
            No outro dia me preparei para nosso “terceiro encontro”. Voltei à padaria e sentei próximo a mesa que ele havia ficado no dia anterior – queria ter uma visão melhor e talvez, quem sabe, iniciar um diálogo. Com as mesmas indumentárias, andar cadenciado, fraco, porém harmônico, o senhor Ermo entrou auxiliado por sua inseparável e elegante bengala.
Até agora não falei muito da aparência do meu protagonista. Do que já foi posto, o que posso acrescentar é que Seu Ermo aparentava ter oitenta anos (o que depois confirmei), era pardo, ostentava uma barba alva e longa (suficiente para cobrir seu longo pescoço – não mais que isso), cabelo curto no mesmo tom da barba, olhos castanhos claros. Não tinha todos os dentes, mas seu bigode exigia que somente um bom observador avistasse sua “banguelice”. Suas vestes, bem, não tenho certeza, mas deveria ter, no máximo, três conjuntos de roupa velhas, porém, sempre em harmonia e sinalizando certa elegância.
Sentou e, enquanto esperava “pelo olhar do outro”, dirigiu sua atenção a uma reportagem sobre a “melhor idade”. Meu ouvido ficou na reportagem e meus olhos em Seu Ermo. No fim, desligando o olhar da TV, Seu Ermo sorriu levemente num ar de reprovação e desprezo enquanto meneava a cabeça negativamente.
– E aí Seu Ermo, o que o senhor achou de tudo isso? – perguntou o padeiro.
– Ilusão. Recurso retórico pobre esse de trocar o nome das coisas para amenizar os efeitos da realidade. Ridículo. Na verdade, uma afronta a todos que se propõe a usar o menor irredutível de qualquer cérebro.
– E o que o senhor pensa sobre a velhice? – perguntei tímido.
Sem dirigir o olhar para mim, como se soubesse que se tratava da minha pessoa disse:
– Desejos suprimidos pelas constantes negativas do corpo; milhares de escolhas com resultados imutáveis, destruidores e inesquecíveis diante dos seus olhos todos os dias; amigos mortos; memória fraca; movimentos torturantes e cansativos; testemunha de olhares piedosos; testemunha da indiferença; testemunha do desprezo; possibilidades oníricas (ou seja, ilusória) que rondam e visitam suas mentes como demônios insones; gritos do corpo lembrando sua morte iminente; ausência de netos como testemunha constante do fracasso da paternidade; vontade sem força; falta de vontade e falta de força.
            Pausou para respirar e pensar. Continuou:
– Não tem todas as tintas, mas essas nuanças podem te dar um vislumbre opaco da realidade de quem pensa mais nos erros e na morte do que na vida e nos acertos. Coisa de um velho solitário.
Seu Ermo falava tudo isso como se estivesse falando com alguém; porém apenas uma tela enorme tomava toda sua visão. Pintado em tinta acrílica, a tela tinha cerca um metro de largura por três de altura. Tomava a parede inteira na altura. Uma longa estrada principiava na parte mais baixa da figura até o meio do quadro. Começava com paralelepípedos ladeados por uma viçosa grama verde, árvores com flores azuis, pássaros amarelos, flores vermelhas e criança correndo. A estrada afilava à medida que e se distanciava. Sua cor e suas laterais transmutavam perdendo as nuances coloridas partindo para um cinza com pequenos pontos luminosos até chegar ao completo breu. No meio do quadro, no final visível da estrada, a imagem espectral de um homem de costas com a sombra do dobro do seu tamanho projetada à frente caminhando para a escuridão que dominava metade do quadro para cima.
– Mais direto impossível! – tentei continuar a conversa.
Silêncio. O café chegou sem a desejada tapioca. Seu Ermo tomou e saiu. Já na calçada voltou-se para o quadro e disse:
– Acho que ao invés de um homem só, uma fila indiana representaria melhor o que o autor intencionou. A fila dos solitários. Tarde demais, o quadro já foi entregue.
            Olhei para o quadro e vi a assinatura com o nome do meu personagem.
Nosso quarto encontro foi acidental. Enquanto brincava na rua, meu filho lançou a bola no quintal de Seu Ermo. Como todas as crianças da rua, ele não teve coragem sequer de olhar para o velho misterioso, muito menos de lhe dirigir a palavra. Contudo, eu agora tinha uma desculpa para ir até lá e, quem sabe, trocar algumas ideias. Era domingo – tinha tempo.
– Bom dia! – Principiei o diálogo da calçada.
Seu Ermo só meneou a cabeça positiva e levemente. O que só dificultava o cumprimento do meu desejo.
– Meu filho...
– Sim, sei. A bola do seus filho, não é? Fique à vontade! – interrompeu Seu Ermo.
            Fiquei andando no quintal fingindo procurar a bola que já sabia onde estava. Queria ganhar tempo. Como não tinha o que dizer, usei da convenção:
– Desculpe, mas qual o nome do Senhor?
– Pergunte algo que realmente não sabe. – Seu Ermo arrumava seu cachimbo aonde dirigia também o olhar cuidadoso.
– Desculpe, só queria conversar e...
– Então, converse. – interrompeu novamente.
– Bem, não sei por onde começar. – procurava um lugar para sentar, porém, sem sucesso.
– Deixe eu adiantar. Bem, fiquei aqui pensando: “O que um velho solitário como eu tem que chama atenção de um pai de família novo e bem-sucedido como o senhor? Pensei e concluí: minha solidão o encantou. Claro, um velho desconhecido também carrega muitos mistérios – o que não deixa de ser encantador. Mas, voltando ao ponto, foi o desejo e o apreço pela solidão que o trouxe aqui.
            Fiquei estático. Ele continuou:
– Alguns casamentos acabam porque a tentação do adultério vence. Ou seja, um outro se intromete entre os dois. Trai minha esposa, sim, porém, com a solidão. As tentações dessa dama da noite sempre foram as mais fortes, pois nela tinha o que evitava em todas as minhas relações – a sinceridade. Depois da separação a velhice veio e deu mais vazão à sinceridade. Quando você não tem o que perder ou ganhar, as palavras saem com mais facilidade.
– Conheço bem essa dama. Tentadora realmente. Falei em um tom baixo e pensativo. Silenciei, pois queria mais ouvir do que falar.
Seu Ermo prosseguiu:
– Reconheço que a prudência é uma virtude. Sim, precisamos poupar os outros da podridão do nosso coração. Contudo, para mim, foi quase uma questão de sanidade. Via-me às vezes em três versões. A sinceridade queria cada vez mais espaço. O mundo da superfície era diferente demais do mundo subterrâneo. Não consegui suportar. O submundo emergiu com força. A prudência morreu. A sinceridade a matou e gerou a solidão.
Enquanto as folhas dançavam entre os pés rachados e encardidos, vi o olhar de Seu Ermo marejar até transbordar em um choro suave. Não sei quanto tempo o silêncio prevaleceu, mas a comunicação não se dissipou um só momento – trocávamos olhares marejados.
Seu Ermo quebrou o silêncio:
– Sozinhos ou acompanhados choraremos. Sempre. A diferença é que sozinho choramos pelo que somos. Nós somos os responsáveis. Com os outros, bem, se fizermos nada para chorar, os outros farão.
– Valeu à pena chorar só? – interrompi curioso, mas reverente – quase sussurrando.
– A solidão é para os que fogem do outro. Quis dar espaço à sinceridade, contudo, na verdade, estava fugindo da sinceridade do outro. Sinceridade sem humildade é uma mistura terrível. Em suma: fugi dos outros. Fugi dos olhares reprovativos, das críticas, das injustiças, dos erros próximos, do sofrimento do outro. Estava sempre ocupado comigo. Não tinha como se dividir com outros. Trabalho? Sim.
– Filhos? Perguntei automaticamente, mas ainda em tom baixo.
–Não. Filhos são outros. Nessa última frase a voz ficou muito embargada, mas continuou:
– Antes de ser um velho solitário, nobre amigo, eu fui um jovem egoísta. Fugi dos outros e, para minha surpresa, me encontrei. Encontrei-me. Lá estava eu sozinho comigo mesmo. Encontro aterrorizante. Pior, vi em mim a podridão que não podia ver nos outros. Porém, não pude fugir de mim mesmo. O último estágio foi querer ficar só. Ficar sem mim mesmo. Porém, minha interpretação de mim mesmo era equivocada, pois fugi de mim mesmo quando fugi do outro. Sem o outro não estou completo. Pena que descobri isso tarde demais.
– Desculpe a indelicadeza – interrompi – mas, como não temos mais previdência, como o senhor vive?
– Adivinha o que os idosos construtores de famílias mononucleares ou sem filhos encontram no final da fila da vida? Trabalho. Só trabalho. Nenhum auxílio. Ora, nada mais natural. Previdência nada mais é do que filhos ajudando e honrando seus pais e avós. Uma geração ajudando a outra. E quando não se tem tempo para ter e criar filhos? Trabalho sem fim. Solidão sem fim. Geração sem filhos; geração solitária.
Baforou o velho cachimbo. Um tipo de sinal para que eu pudesse entrar na conversa. Como não falei nada, retomou a palavra:
– Meu querido, já observou que minha casa é a única sem muros nessa rua?
– Sim, percebi.
– Posso te garantir, por trás desses muros enormes encontrarás toda uma geração sentada em poltronas imaginando como seria os rostos dos seus filhos e netos. Guarde isso meu jovem: a solidão é filha do egoísmo.
Seu Ermo apertou meu ombro com força olhou amorosamente e disse:
– Pior, a solidão nunca está só. Seus parceiros logo se apresentaram. Ah, e como são muitos e variados em qualidade! Depressão, medo, saudade com remorso, desânimo, silêncio, amputação...
Interrompi:
– E o olhar de paz que sempre vejo nos olhos do senhor?
            Seu Ermo apreciou mais do seu cachimbo.
– Ora, meu caro, muitas vezes vemos o que conhecemos e/ou desejamos. Você via na solidão a solução. Quando me viu, viu o que esperava. Pode ter visto paz, porém sua ligação com a solidão fala mais de suas expectativas do que da realidade. Sim, tenho paz, contudo, ela não advém da solidão. Diria mais, tenho paz, a despeito da solidão. Viver só é para poucos. A solidão – pausou para que o silêncio prefaciasse suas palavras – a solidão é para ninguém.
Alguns meses passaram e com eles Seu Ermo. Sempre passo em frente da sua casa; paro e contemplo as várias camadas de folhas e as plantas vencendo a luta contra a velha poltrona já tombada. Só se percebe a silhueta do móvel. Janelas caídas. Telhado incompleto. Ratos. Gatos. Pássaros...
Um dia, diante da velha casa, perdido no tempo e com meus pensamentos, meu filho caçula puxou minha blusa e soltou a seguinte frase:
– Tenho medo dessa casa papai.
– Eu também meu filho. Eu também...

Ponderações sobre as distinções na Santa Trindade.

1] Uma questão metodológica: a Trindade, como a própria realidade, não pode ser contemplada no todo de uma só vez. Toda abordagem epistemológica deve-se dar por perspectivas. 
A ortodoxia cristã assegura que há igualdade e diversidade na Santa Trindade. Todo sistema trinitariano, pois, deve revelar o que as pessoas compartilham (unidade) e o que caracteriza a individualidade de cada uma delas (diversidade). Contudo, essas verdades não podem ser contempladas ao mesmo tempo. Assim, se existe uma eterna diferença na forma como as pessoas da Trindade se relacionam (e.g., o Pai com o Filho [e não com o Espírito], o Pai com o Espírito Santo [e não com o Filho], o Pai como o Filho e o Espírito Santo...), não se pode apelar (somente pressupor) para homoousios quando o mérito é a distinção entre as pessoas. Caso contrário, cairemos no sabelianismo negando toda distinção. Por outro lado, se não pressupomos homoousios, cairemos no triteísmo. Devemos reconhecer, portanto, que distinção é uma perspectiva diferente. Mais importante ainda é manter a tensão misteriosa e, por conseguinte, doxológica, entre essas perspectivas.

2] Colocações Agostinianas

2.1 Concordo com Agostinho quando combateu a ideia ariana de que tudo que se diz de Deus ou se compreende de Deus, diz-se segundo a substancia. As únicas opções para Ário (seguindo Aristóteles) eram “acidente” e “substancia”. Como a primeira era mutável, só tinha uma opção – a substancia. Alguns cristãos ortodoxos fazem uma “leitura aristotélica” (escolástica) restringindo o discurso sobre Deus a categorias de substancia e acidente; entendendo, por exemplo, filiação/subordinação como acidente e não essência.

Agostinho, partindo das Escrituras (com suas categorias revelacionais próprias), nos lembra de outra categoria: as relações (cf. Trindade, Livro V.6). E é exatamente aqui que podemos encontrar as distinções em Deus. No debate sobre as distinções, portanto, precisamos evitar apelos e silogismos escolásticos como se substancia/acidente fossem os únicos caminhos possíveis quando o assunto é Deus. Bem disse Lutero: “[…] ninguém se torna teólogo a não ser sem Aristóteles”.

Aqui vale lembrar as palavras do grande pastor de Genebra que nos alerta de nossos limites e dependência da revelação (destaque meu): “Ora, se a distinção que em uma só e única divindade subsiste de Pai, Filho e Espírito, posto que é difícil de apreender-se, causa a certos espíritos mais dificuldade e problema do que é justo, deve ter-se na lembrança que as mentes humanas mergulham em um labirinto quando cedem à sua curiosidade, e assim, por mais que não alcancem a altura do mistério, deixam-se reger pelos oráculos celestes”. (Institutas I.13.21).

2.2 Também concordo com o bispo de Hipona quando entende que existem passagens que revelam uma subordinação no Filho, contudo, – e aqui vem a questão central – não podem ser explicadas somente apelando para a encarnação (seguindo uma perspectiva exclusivamente econômica), mas pela filiação – que é relacional e eterna.

3] Filiação

A filiação não diz respeito somente a um evento (perspectiva econômica) dentro do plano eterno. A geração do Filho é tanto ontológica quanto econômica (cf. principalmente João 5.26 [obs: não creio que μονογενής sanciona a filiação eterna]; Romanos 1.1ss). Em seu comentário do Evangelho de João, Carson declara (destaque meu): “Muitos sistemáticos ligam esse ensino ao que eles chamam de ‘geração eterna do Filho’. Isso é irrepreensível […]”. E em outra obra afirma que:Não é uma concessão feita a Jesus em algum momento no tempo [...] a passagem de João 5.26 ajuda a confirmar o relacionamento peculiar entre o Pai e o Filho, na eternidade e desde a eternidadeSua Filiação, portanto, não está restrita a um pacto, mas a sua relação com o Pai. As decisões pactuaisrefletem (não estabelecem) essa relação.

A filiação lida com a questão complexa de como Deus se relaciona com ele mesmo. Não é uma questão de status ou ser (ousia), mas de relação interpessoal. Segundo Agostinho: “Cristo, em relação a si mesmo, é chamado Deus; em relação ao Pai, é chamado Filho”. Filiação, pois, diz respeito somente à relação entre o Pai e o Filho.

4] Subordinação e Filiação

Uma das grandes questões envolvendo a filiação é relação entre subordinação e filiação. A priori não se pode inferir subordinação de filiação. Não podemos esquecer que “Pai” e “Filho” são analogias. É importante entender, pois, que subordinação não é o único “ponto de contato” na relação entre paternidade e filiação. Em Agostinho, por exemplo, a ênfase está na origem (procedência). O Filho é Filho porque procede do Pai. Contudo, a relação entre um pai e um filho pode ser de subordinação/obediência. E é exatamente isso que encontramos em várias passagens onde a obediência do Senhor Jesus ao Pai é ressaltada – tanto antes (e.g., João 6.38; Apocalipse 13.8) como depois da encarnação (e.g., 1Coríntios 15.22). A Bíblia, sim, diz muito sobre o relacionamento eterno (não restrito a encarnação) entre o Pai e o Filho. Não se trata de especulação filosófica, mas de revelação. E esse relacionamento envolve, sim, sujeição. A pressuposição ontológica (ousia), por outro lado, controla-nos de forma tal que não nos permite entender que obediência implica em “conflito de vontades”.

Para aqueles que tem dificuldade com a terminologia “sujeição”, por entender que implica em inferioridade – o que não é verdade – sugiro as expressões do Dr. Scott Horrell: “generosa preeminência do Pai” ou a “colaboração alegre do Filho”.

6] Filosofia

Quanto às questões filosóficas e a distinção entre Trindade Imanente e econômica, fico com as palavras do Dr. Scott Horrell (destaque meu): Argumentos filosóficos de que uma verdadeira igualdade de natureza necessita no sentido último igualdade de ordem social nem são racionalmente requeridos nem estão em harmonia com a auto-revelação de Deus. Pelo contrário, insistir na igualdade de papéis e ordem eternos a despeito da evidência bíblica, é metodologicamente paralelo com os teólogos heterodoxos que reduz Deus a seus próprios paradigmas mentais. Quando uma investigação filosófica divorcia uma teologia da Trindade imanente da revelação da Trindade econômica, tal investigação pode ter ido para uma direção que nós nem se quer ousamos ir.”

7] Conclusão: subordinação não é única e exclusivamente ontológica (como entendiam os arianos e, infelizmente, para muitos, a utilização da expressão implica necessariamente em arianismo); ou econômica/histórica (que é real, mas não explica todos os textos); trata-se, na verdade, de uma questão relacional. Não diz nada sobre a natureza; mas sobre as “relações divinas”. Sim, há subordinação em Deus. É o que John Frame denomina de “subordinação eterna de papel”.

Obs.: Proponentes dessa visão (com insignificantes variações): Wayne Grudem, Bruce Ware, D. A. Carson, John Frame, Thomas Schreiner, Scott Horrell, Robert Letham, Andreas Köstenberger, Scott Swain, Stephen Kovach, John Piper, Tim Keller e Andy Naselli.

Perfil

Minha foto
Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.