Ponderações sobre as distinções na Santa Trindade.

1] Uma questão metodológica: a Trindade, como a própria realidade, não pode ser contemplada no todo de uma só vez. Toda abordagem epistemológica deve-se dar por perspectivas. 
A ortodoxia cristã assegura que há igualdade e diversidade na Santa Trindade. Todo sistema trinitariano, pois, deve revelar o que as pessoas compartilham (unidade) e o que caracteriza a individualidade de cada uma delas (diversidade). Contudo, essas verdades não podem ser contempladas ao mesmo tempo. Assim, se existe uma eterna diferença na forma como as pessoas da Trindade se relacionam (e.g., o Pai com o Filho [e não com o Espírito], o Pai com o Espírito Santo [e não com o Filho], o Pai como o Filho e o Espírito Santo...), não se pode apelar (somente pressupor) para homoousios quando o mérito é a distinção entre as pessoas. Caso contrário, cairemos no sabelianismo negando toda distinção. Por outro lado, se não pressupomos homoousios, cairemos no triteísmo. Devemos reconhecer, portanto, que distinção é uma perspectiva diferente. Mais importante ainda é manter a tensão misteriosa e, por conseguinte, doxológica, entre essas perspectivas.

2] Colocações Agostinianas

2.1 Concordo com Agostinho quando combateu a ideia ariana de que tudo que se diz de Deus ou se compreende de Deus, diz-se segundo a substancia. As únicas opções para Ário (seguindo Aristóteles) eram “acidente” e “substancia”. Como a primeira era mutável, só tinha uma opção – a substancia. Alguns cristãos ortodoxos fazem uma “leitura aristotélica” (escolástica) restringindo o discurso sobre Deus a categorias de substancia e acidente; entendendo, por exemplo, filiação/subordinação como acidente e não essência.

Agostinho, partindo das Escrituras (com suas categorias revelacionais próprias), nos lembra de outra categoria: as relações (cf. Trindade, Livro V.6). E é exatamente aqui que podemos encontrar as distinções em Deus. No debate sobre as distinções, portanto, precisamos evitar apelos e silogismos escolásticos como se substancia/acidente fossem os únicos caminhos possíveis quando o assunto é Deus. Bem disse Lutero: “[…] ninguém se torna teólogo a não ser sem Aristóteles”.

Aqui vale lembrar as palavras do grande pastor de Genebra que nos alerta de nossos limites e dependência da revelação (destaque meu): “Ora, se a distinção que em uma só e única divindade subsiste de Pai, Filho e Espírito, posto que é difícil de apreender-se, causa a certos espíritos mais dificuldade e problema do que é justo, deve ter-se na lembrança que as mentes humanas mergulham em um labirinto quando cedem à sua curiosidade, e assim, por mais que não alcancem a altura do mistério, deixam-se reger pelos oráculos celestes”. (Institutas I.13.21).

2.2 Também concordo com o bispo de Hipona quando entende que existem passagens que revelam uma subordinação no Filho, contudo, – e aqui vem a questão central – não podem ser explicadas somente apelando para a encarnação (seguindo uma perspectiva exclusivamente econômica), mas pela filiação – que é relacional e eterna.

3] Filiação

A filiação não diz respeito somente a um evento (perspectiva econômica) dentro do plano eterno. A geração do Filho é tanto ontológica quanto econômica (cf. principalmente João 5.26 [obs: não creio que μονογενής sanciona a filiação eterna]; Romanos 1.1ss). Em seu comentário do Evangelho de João, Carson declara (destaque meu): “Muitos sistemáticos ligam esse ensino ao que eles chamam de ‘geração eterna do Filho’. Isso é irrepreensível […]”. E em outra obra afirma que:Não é uma concessão feita a Jesus em algum momento no tempo [...] a passagem de João 5.26 ajuda a confirmar o relacionamento peculiar entre o Pai e o Filho, na eternidade e desde a eternidadeSua Filiação, portanto, não está restrita a um pacto, mas a sua relação com o Pai. As decisões pactuaisrefletem (não estabelecem) essa relação.

A filiação lida com a questão complexa de como Deus se relaciona com ele mesmo. Não é uma questão de status ou ser (ousia), mas de relação interpessoal. Segundo Agostinho: “Cristo, em relação a si mesmo, é chamado Deus; em relação ao Pai, é chamado Filho”. Filiação, pois, diz respeito somente à relação entre o Pai e o Filho.

4] Subordinação e Filiação

Uma das grandes questões envolvendo a filiação é relação entre subordinação e filiação. A priori não se pode inferir subordinação de filiação. Não podemos esquecer que “Pai” e “Filho” são analogias. É importante entender, pois, que subordinação não é o único “ponto de contato” na relação entre paternidade e filiação. Em Agostinho, por exemplo, a ênfase está na origem (procedência). O Filho é Filho porque procede do Pai. Contudo, a relação entre um pai e um filho pode ser de subordinação/obediência. E é exatamente isso que encontramos em várias passagens onde a obediência do Senhor Jesus ao Pai é ressaltada – tanto antes (e.g., João 6.38; Apocalipse 13.8) como depois da encarnação (e.g., 1Coríntios 15.22). A Bíblia, sim, diz muito sobre o relacionamento eterno (não restrito a encarnação) entre o Pai e o Filho. Não se trata de especulação filosófica, mas de revelação. E esse relacionamento envolve, sim, sujeição. A pressuposição ontológica (ousia), por outro lado, controla-nos de forma tal que não nos permite entender que obediência implica em “conflito de vontades”.

Para aqueles que tem dificuldade com a terminologia “sujeição”, por entender que implica em inferioridade – o que não é verdade – sugiro as expressões do Dr. Scott Horrell: “generosa preeminência do Pai” ou a “colaboração alegre do Filho”.

6] Filosofia

Quanto às questões filosóficas e a distinção entre Trindade Imanente e econômica, fico com as palavras do Dr. Scott Horrell (destaque meu): Argumentos filosóficos de que uma verdadeira igualdade de natureza necessita no sentido último igualdade de ordem social nem são racionalmente requeridos nem estão em harmonia com a auto-revelação de Deus. Pelo contrário, insistir na igualdade de papéis e ordem eternos a despeito da evidência bíblica, é metodologicamente paralelo com os teólogos heterodoxos que reduz Deus a seus próprios paradigmas mentais. Quando uma investigação filosófica divorcia uma teologia da Trindade imanente da revelação da Trindade econômica, tal investigação pode ter ido para uma direção que nós nem se quer ousamos ir.”

7] Conclusão: subordinação não é única e exclusivamente ontológica (como entendiam os arianos e, infelizmente, para muitos, a utilização da expressão implica necessariamente em arianismo); ou econômica/histórica (que é real, mas não explica todos os textos); trata-se, na verdade, de uma questão relacional. Não diz nada sobre a natureza; mas sobre as “relações divinas”. Sim, há subordinação em Deus. É o que John Frame denomina de “subordinação eterna de papel”.

Obs.: Proponentes dessa visão (com insignificantes variações): Wayne Grudem, Bruce Ware, D. A. Carson, John Frame, Thomas Schreiner, Scott Horrell, Robert Letham, Andreas Köstenberger, Scott Swain, Stephen Kovach, John Piper, Tim Keller e Andy Naselli.

9 comentários:

  1. Oi mestre,

    Mesmo não tendo acompanhado mais de perto as discussões envolvendo a questão da Trindade, tenho visto esse assunto no topo do feed de notícias e lido alguns comentários e debates, embora não o suficiente para entrar nele. Tenho minhas considerações, de seminário, o que não pode ser muito coisa, claro. Mas, o que li me vez meditar nos perigos e armadilhas que envolvem essa temática diante de nossa limitação, como o senhor colocou muito bem.

    Bom, mestre, ontem mesmo o senhor me disse: "Um bom pregador é um bom editor." Ainda não cheguei a nenhum dos dois, especialmente o "bom editor", mas a forma sucinta como escreveu um tema espinhoso e polêmico, muito me ensinou. Acho que em certas questões podemos dizer que "um bom pensador é um bom editor".

    Obrigado pelo tempo que o senhor empregou nesses estudos, muito me ajudou.


    Seu amigo, Elivando.

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  2. Muito bom o texto. Que Deus te abençoe, pastor.

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  3. Pr. Rômulo, é óbvio que eu preciso comentar este teu texto... desconfio que já esperava.
    Primeiramente, quero dar meus parabéns pelo artigo. Embora pequeno, resume bem sua posição e reflete bem o quão bom teólogo e estudioso o sr. é.
    Aviso, de antemão, a quem estiver lendo este meu comentário, que, em qualquer coisa que eu discorde do pr. Rômulo, eu tenho mais chances de estar errado do que ele, pois ele já tem se mostrado um teólogo de muita competencia! Além disso, ele sempre terá a ultima palavra aqui, pois ele é meu professor e muito mais experiente do que eu.

    Pois bem, eu não quero "esticar muito a baladeira", visto que o sr. fez apenas ponderações. Porém, gostaria de comentar alguns pontos importantes.

    1. Eu gostei que o sr. procura seguir Agostinho. É realmente bom que tenhamos uma base teórica a seguir. Eu também tenho as minhas. Porém, eu espero que o sr. esteja ciente de que seu conselho a respeito do cuidado com as categorias aristotélicas também serve como conselho a respeito do cuidado com as categorias neo-platônicas de Agostinho.
    O sr. deve saber que o uso da categoria de "relações" em Agostinho é fortemente neo-platônica, pois diz respeito às relações de mente e alma, da teoria das gradações e das emanações.
    Por isso, não podemos cometer o equívoco de dizer que Agostinho está "partindo das Escrituras", enquanto os seus críticos estão partindo do "escolasticismo". Esta é uma afirmação que, tomada radicalmente, pode refletir uma certa inocência quanto às influências sobre a leitura bíblica de Agostinho.

    2. Talvez por serem ponderações, eu senti falta de alguma base para a sua afirmação de que Agostinho entendia que a subordinação não é por causa da encarnação. É bom salientar que há especialistas em Agostinho que discordam dessa afirmação, como Kevin Giles. Porém, não creio ser muito proveitoso discutir quem lê Agostinho corretamente. Então, bola pra frente.

    3. Eu fiquei curioso que o sr. abraça a doutrina da geração eterna “ontológica” do Filho, defendida por Agostinho, embora ela seja rejeitada pela grande maioria dos teólogos modernos que defendem a SEF.

    4. Quanto a João 5:26, eu falo com muito cuidado pois o sr. (e Carson) são exegetas bem mais competentes que eu. Mas me parece claro que o uso de dois εδωκεν nos versos 26 e 27 mostram que tanto o “conceder vida” quanto o “dar autoridade” referem-se ao mesmo “momento”, ou pelo menos estão relacionadas ao mesmo plano. Eu não vejo como escapar da conclusão de que tudo isto está relacionado com o plano da redenção, a obra de ressurreição e o julgamento dos homens, como o próprio contexto mostra. Eu não consigo entender como uma “geração eterna” do Filho pode ser retirada deste texto.

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  4. 5. O seu ponto “subordinação e filiação” é, para mim, o mais problemático. Mais uma vez o sr. segue Agostinho para basear a subordinação na geração eterna do Filho. Até aí, tudo bem, visto que os teólogos da SEF mais antigos faziam assim. Porém, quando o sr. vai mostrar os textos que falam da subordinação como aspecto da filiação, o sr. cita apenas textos que falam a respeito do plano da salvação! Veja só:

    João 6:38 Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou. – reflete o plano de salvação onde Deus envia o Filho ao mundo para morrer pelos homens.

    Apo 13:8 e adorá-la-ão todos os que habitam sobre a terra, aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo. – explicitamente fala do “plano” da morte do Cordeiro, que é o plano da redenção.

    1Co 15:28 Quando, porém, todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então, o próprio Filho também se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos. – claramente fala do fim do plano da redenção, ou a subordinação final de Cristo.

    Por basear, portanto, a subordinação na eterna filiação de Jesus, o sr. fica sem textos bíblicos que exibam que a filiação requer subordinação. Aliás, para basear a subordinação na eterna filiação, o sr. primeiro precisa provar a doutrina da geração eterna, o que é um caso dificílimo de se fazer. Porém, mesmo depois disso, o sr precisa demonstrar que há indícios que a subordinação é um aspecto da filiação à parte do plano da redenção, o que o sr. não conseguiu no seu texto e, desconfio, jamais conseguirá, pois estes textos inexistem.

    6. Por fim, eu sugeriria novas ponderações nas seguintes questões: a) Se a subordinação é eterna, o que o sr. pensa da doutrina afirmada pela tradição ortodoxa da simplicidade da vontade de Deus (pericorese divina)? b) O que dizer de Filipenses 2:5-11 que fala que o Filho era “igual a Deus” e “subsistia em forma de Deus”, e assumiu a “forma de servo”? Esse texto não sugere que a subordinação é dependente da encarnação? c) O que dizer do fato de a identidade divina de Jesus ser, proeminentemente, encontrada no nome YHWH (SENHOR) aplicado a ele? Isso não significa que, na mentalidade paulina e judaica, existe uma igualdade de autoridade na identidade divina?

    Mais uma vez, eu agradeço pela contribuição. Eu realmente gosto deste tipo de interação, pois ela nos faz, e aos leitores também, crescer em conhecimento e parceria.
    Grande abraço, meu querido amigo e pastor.

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    1. Diz homem!

      1. Quanto a Agostinho, creio que ele é influenciado até demais por Platão. Contudo, a categoria de “relação” não é retirada de Platão, mas de João. Se há coincidência é outra coisa. É só ler A Trindade. Percebe-se isso até pela forma como ele organizou a obra. Primeiro, análise de TEXTOS bíblicos; depois considerações filosóficas. Garanto que aqui ele está mais próximo de João do que de Platão. Leia com atenção e verá.

      2. Subordinação e Agostinho. São muitas as discussões. Todos recorrem a ele para defender suas visões. Sim, não é clara a questão da subordinação em Agostinho. Isso reconheço. Sua ênfase maior, como coloquei, é na filiação-procedência e não na subordinação. Sinceramente, no sentido último, não me importa qual a visão de Agostinho.

      3. Sim, defendo a geração eterna. Carson e muitos que citei creem assim. O que muitos tem rejeitado é relação da filiação eterna com Salmo 2 – o que também rejeito.

      4. Sobre João 5.26, 27, realmente sua apelação ao “mesmo momento” não tem suporte exegético nenhum. Há furos no conceito de tempo e verbo. Na verdade, são muitos e não tenho como responder aqui. Perdoe-me. Bem, esse é o texto base para crer que existe geração eterna. Como alguém pode dá a outro o que esse outro tem “em si mesmo?”. Se não há mérito temporal nos verbos gregos quanto mais quando a declaração tem essa natureza. Sinceramente, acho difícil fugir dessa conclusão. E garanto que não era simpatizante dessa ideia até considerá-lo. Mas...

      5. Subordinação e o plano de salvação. Não faço distinção entre Trindade Econômica e Trindade Imanente. Os papeis desempenhados pelas pessoas da Trindade na salvação revelação suas relações eternas. Ninguém pode falar de Trindade imanente a não ser pela Trindade Econômica. Tudo que sabemos de Deus tem relação direta com a redenção. Se os textos não convencem. Calo-me.

      6. Você apela para a pericorese e para a igualdade de natureza. Esse, definitivamente, NÃO É O MEU PONTO. Não se apela a igualdade quando se fala de distinção. Caso contrário, nunca falaremos sobre distinção.

      É isso meu brother! Valeu! Apesar de nossas divergências. "Bora" caminhar juntos. Abração!

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    2. Muito obrigado, pastor Rômulo, pela resposta. Foi muito boa!

      Como eu disse, eu deixo o sr. com a palavra final.

      Eu queria apenas comentar que eu já imaginava sua resposta de que não há mérito temporal nos verbos gregos, apesar de que geralmente o pessoal gosta de dizer que "se o Pai enviou o Filho, então o Filho já era o Filho no passado".
      Porém, note que eu coloque a palavra momento entre aspas, justamente para ressaltar que eu não falava de um ponto específico no passado (ah...as aulas de grego 1 rsrss), mas de um mesmo plano, ou acordo.
      Como eu disse, além de ter recebido "vida em si mesmo", Jesus também recebeu "autoridade para julgar" e tudo isso está relacionado com a ressurreição. Ou seja, Jesus recebeu o poder de ressuscitar e julgar os ressuscitados.

      Mas não desprezo a possibilidade da geração eterna neste texto. Se eu estiver errado e o sr. certo, o que é bem provável, a geração eterna não possui nenhuma implicação lógica para a subordinação eterna. Kevin Giles, por exemplo, crê na geração eterna e não na subordinação. Já Bruce Ware não crê na geração eterna e sim na subordinação.

      Enfim, valeu pastor. Mais uma vez obrigado! Abração

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Perfil

Minha foto
Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.