A hermenêutica dispensacionalista progressiva.

A RELAÇÃO HERMENÊUTICA ENTRE O AT E O NT

DUAS PERSPECTIVAS

A. O NOVO INTERPRETA O ANTIGO:

“A exegese cristã deve permitir ao Novo Testamento interpretar o AT… Essa abordagem à interpretação bíblica permite que a revelação conclusiva de Deus no Novo Testamento interprete autoritativamente a revelação incompleta no Antigo”[1]. Essa é abordagem tradicional da Teologia das Alianças. É dito, por exemplo, que Pedro inspirado por Deus “transferiu o trono de Davi Jerusalém-Sião (Sl. 110:2) – para o céu”[2]. Para Elliott Johnson essa é uma outra forma de dizer que o NT [re]interpreta (ou muda) o AT[3]. Ladd, por exemplo, só acredita em um milênio devido sua leitura neotestamentária (especificamente Ap. 20 e Rm. 11:26) e não devido a interpretação literal das promessas feitas no AT referentes a um reino terreno[4].
Dentro dessa escola, há o grupo do sensus plenior. Para esses o NT “nos possibilita obter um ‘sentido mais completo’ […] do texto veterotestamentário, o que não era possível aos autores humanos do AT pretenderem, tampouco compreenderem”[5]. Assim, “o autor humano nem sempre compreendia completamente […] a referência profética”[6].

B. O ANTIGO INTERPRETA O NOVO

O dispensacionalismo é o grande nome dessa abordagem. Porém, pela própria natureza dessa escola hermenêutica, há muita variação. Aqui queremos considerar suas duas grandes vertentes: o dispensacionalismo tradicional ou clássico (Alguns representantes: Charles C. Ryrie, Thomas Ice, Elliott E. Johnson) e o progressivo (Darrell L. Bock, C. A. Blaising, Robert Saucy).

No Dispensacionalismo tradicional o AT tem a prioridade. “As passagens do Antigo Testamento são deixadas intactas pelo Novo Testamento”[7]. “O aumento não se dá à custa da promessa original”[8]. Por exemplo, para esses, as Alianças Davídica e Nova não foram cumpridas no NT exatamente porque não temos a aplicação nos termos do AT. Nas palavras de John R. Master: “Se a nova aliança de Jeremias 31:31-34 promete a certeza de obediência experimental aos mandamentos de Deus (‘Torah’), porque Paulo continua a experimentar o pecado (1Tm.1:15; cf. Fp. 3:12)?”[9].

Dispensacionalismo Progressivo: O diferencial dessa abordagem está em reconhecer que “o Novo Testamento introduz mudança e avanço; Ele não simplesmente repete a revelação do Antigo Testamento. Ele faz adições complementares, porém, ele não lança ao mar as antigas promessas[10]. Em sua defesa os progressivos dizem que “É essa manutenção do significado [no Antigo Testamento] que dá estabilidade a abordagem”[11]. “Não há substituição de significados, somente acréscimo de um novo cenário o qual ele também se aplica”[12].

Exemplificando: Um exemplo muito usado é o do “Trono de Davi”. No AT temos uma dimensão terrena, já no NT (especificamente At. 2:30) temos uma dimensão celestial. O dispensacionalista tradicional diria que a Aliança Davídica não foi cumprida, pois o que Atos nos apresenta não se encaixa com o contexto e/ou com os termos do AT. O progressista, por outro lado, diria que a dimensão celestial é um novo elemento[13] do progresso da revelação. O progressista ainda diria que “devemos ser sensíveis ao lermos ambos os Testamentos de uma forma que honre cada contexto e unifique-os canonicamente de forma que faça sentido a sua expressão orginal[14]. Para o progressista “uma leitura normal e complementar do contexto do Novo Testamento introduz uma nova nota de continuidade no progresso da revelação sem resultar numa alteração do significado último das passagens do Antigo Testamento”[15]. Na hermenêutica progressista não podemos fechar a questão das Alianças antes que o tema seja completamente desenvolvido[16]. É por isso que a denominaram de “hermenêutica completar”[17].

AS ALIANÇAS: CONTEÚDO, RELAÇÃO ENTRE ELAS E CUMPRIMENTO.
Aliança Abraâmica: Entre os capítulos 12 a 15 de Gênesis temos oito promessas. São elas: (1) uma descendência (semente); (2) bênção para Abraão; (3) Um grande nome para Abraão; (4) bênção ou maldição para aqueles que abençoarem ou amaldiçoarem Abraão; (5) bênção para as famílias da terra através de Abraão; (6) terra para a descendência de Abraão; (7) Deus será o Deus do seu povo; (8) reis serão descendentes de Abraão.

Aliança Davídica (2Sm. 7): Embora o termo aliança (tyrIB.) não apareça na passagem, referências posteriores referem-se a ela dessa forma (cf. 2Sm. 23:5; 2Cr. 13:5; Sl. 89:3). O Senhor lhe promete: (1) um grande nome (2Sm. 7:9); (2) Davi estabelecerá um lugar de repouso para a nação (vv. 10-11); (3) haverá uma descendência que reinará depois de sua morte (vv. 11b-13). (4) o relacionamento de Deus para com o rei nesta dinastia é especial, é um relacionamento de pai e filho (vv. 14-15). (5) é assegurado que essa linhagem e seu trono permanecerão para sempre (vv.16)[18].

A Nova Aliança (Jr. 31:31-34): Há três elementos importantes nessa aliança: (1) a aliança foi feita com Judá e Israel. Deus restaurará a nação completamente; (2) Essa aliança é diferente da aliança feita com Moisés; (3) essa aliança visa a transformação e restauração do relacionamento (perdão e acesso direto ao conhecimento de Deus).

A relação entre as Alianças

A promessa de uma grande nação implica na necessidade de terra (Abraâmica), de um líder (Davídica). E para experimentar as bênção do Reino Messiânico o povo precisava obedecer a Deus (cf. Dt. 27-30). A necessidade de bênçãos e obediência é garantida na Nova Aliança[19]. Assim, as alianças são complementares.

O CUMPRIMENTO DA ALIANÇA DAVÍDICA E A ATIVIDADE MESSIÂNICA DE CRISTO[20].

As divergências sobre o reino são várias. As principais são: A natureza do reino (político? espiritual? Político-espiritual?); sua vinda (vem em fases? já veio? Ainda virá? Veio e virá?), sua relação com Israel (Deus vai tratar futuramente com um Israel ético? Israel espiritual? ) e sua relação com a Igreja (o reino é o mesmo que igreja? Se manifesta na igreja? A igreja é somente sua porta de entrada?).

Observaremos duas questões básicas sobre o reino:

1] As declarações do Senhor Jesus acerca do mistério do Reino nas parábolas de Mt. 13, Mc. 4, Lc. 8:4-15 fazem referência a um novo (e distinto) programa de reino ou esses mistérios fazem parte de um desenvolvimento revelacional de um único programa já existente e prometido?

2] O reino (ou reinos) é espiritual, político ou ambos?

Para responder essas questões precisamos de uma definição de Reino e algumas expressões de grande valor hermenêutico como “cumprimento”, por exemplo. Segue alguns princípios esclarecedores:

1] Sobre cumprimento: Este autor entende que a sinalização do cumprimento de uma aliança não exige a presença de todos os elementos a ela ligados. Se houver de um apelo à linguagem das alianças e provisões de suas promessas, temos o início de cumprimento.

2] As declarações neotestametárias sobre a “chegada” ou “proximidade” do reino não pode ser inteiramente aplicada ao reino teocrático ou a soberania universal de Deus (e.g., dispensacionalismo), pois o reino tem sempre existido (Sl. 145:10-13), enquanto o Novo Testamento proclama um reino que não existia previamente.

3] A distinção entre os “reinos” presente e futuro como se tratando de duas esferas ou entidades distintas é problemática visto que os autores do NT não se preocupam com o uso da mesma terminologia (cf. Lc. 19:11 [futuro]; 11:20 [presente]).

4] É melhor pensar em um só programa em duas fases e não dois programas distintos. O reino tem uma fase futura (Lc. 19:11; At. 14:22; Ap. 11:15) e presente (Jo. 3:1-15; Cl. 1:13). Assim, se é o mesmo reino, ele não foi não foi adiado, mas antecipado.

4] A presença do reino hoje não elimina a distinção entre Israel e a Igreja. Temos o cumprimento inicial na Igreja e sua consumação com Israel. O Israel étnico não foi completamente excluído, somente deixado de lado temporariamente. A promessa, contudo, ainda está viva (cf. Rm. 11:17-24).

5] Alguns têm questionado a presença do reino, pois todo reinado exige uma regência. Algumas questões devem ser consideradas:

a] Exercício do reino exige uma presença de uma regência coercitiva?
b] Deve-se subjugar todos os inimigos para se ter um regência?
c] Sobre o exercício corrente do reinado de Cristo cf. 1Co. 15:25: “Porque convém que reine (basileuo – tempo presente) "até" que haja posto a todos os inimigos debaixo de seus pés”.
d] Não há necessidade de uma terminologia específica. O reino pode ser referido sem o uso de vocábulos, por exemplo, derivado da raiz de basile,ia. Por exemplo, Ez. 34:23-24 faz uma ligação entre o pastorado e o reinado (cf. Mq. 5:2-4). Quando o NT usa o termo “messias” para o Senhor Jesus, há uma dimensão real (cf. Rm. 1:2-4; Ef. 1:19-23). Além dessas razões, Bock acredita que Cristo não é chamado de rei para não encorajar uma escatologia super-realizada (cf. 1Co. 4:8-13).


PASSAGENS CHAVES SOBRE A ALIANÇA DAVÍDICA.

Lucas. 1:67-79
As alianças Davídica e Abraâmicas são tratadas juntas aqui. A visita de Deus consiste:

a. Na defesa de Deus dos inimigos do seu povo e a condição do seu povo o servi-Lo (vv. 74-75).
b. A presença de uma luz de salvação tirando o povo da escuridão e da morte (vv. 78-79).

Para Bock, o hino serve como uma introdução ao ensino do evangelho de Lucas. Deve-se ler o restante do evangelho para ver o ponto e escopo da introdução. A leitura revelará que os inimigos não devem ser definidos somente como os romanos, mas como as forças espirituais que estão por trás deles.

Matheus 3:1-12

O texto nos apresenta o indicador da chegada do reino. A forma de sabermos que o reino dos céus veio é a presença de alguém mais poderoso que João. Esse, por sua vez, batizará com o Espírito Santo (cf. At. 11:15-17; Jo. 3). Assim como no hino de Zacarias, a esperança davídica e abraâmica são ligadas. O anuncio de João uniu as alianças davídica (rei e reino) e nova (Espírito Santo).

Lucas 24:43-49 e Atos 2:14-39.

A obra mediadora de Cristo em enviar o Espírito é evidência de que Ele está sentado no trono prometido a Davi, excedendo autoridade messiânica e regência. Tentar distinguir tronos é ignorar o fato de que a Bíblia também descreve o trono terreno de Salomão com o trono do Senhor (1Cr. 29:23). Assim o trono do Pai não é um trono celeste; nem o trono de Davi precisa ser um trono terreno. A significância do trono não é uma questão de localização, mas de função.

Autoridade real é o que Pedro tem em mente quando trata do Senhor Jesus. Todos os textos citados são reais, messiânicos, ou textos dos “últimos dias”.

Atos 13:15-39

1] Parece razoável pensar que Paulo pregou sobre o reino já que o “reino” é o sumário de suas pregações no livro de Atos (cf. At. 19:8; 20:25; 28:23, 31).
2] A frase "achei Davi” vem do Sl. 89:20 (LXX 88:20), o maior salmo sobre o compromisso de Deus feito a Davi.
3] Paulo está pregando a realização corrente do reino prometido a Davi. O tempo perfeito do verbo “cumprir” no v.33 fala de uma condição existente de cumprimento em resultado da atividade de Deus em Cristo. O que Deus fez foi o cumprimento e os efeitos são presentes.
4] É uma mensagem para “Israel”. Não há indicação de mudanças no programa de Deus. Paulo está pregando para Israel acerca de Jesus como cumprimento da promessa messiânica.


CONCLUSÃO: Os textos nos revelam que existe um portador de autoridade (Jesus), um reino (povo preparado por Deus) e um exercício de autoridade (o dom do Espírito Santo). Certamente o reino apresentado no NT não cumpri as profecias do AT exata e completamente em seus termos. Isso, contudo, não elimina sua existência e o início do cumprimento. Jesus antecipou Seu reino e o trará no futuro.

[1] ICE, Thomas. Dispensational Hermeneutics em WILLIS, Wesley R. & MASTER, John (eds.) Issues in Dispensationalism. Chicago: Mood Press, 1994, pp. 38-9 (negrito nosso).
[2] LADD, George Eldon. Pré-Milenismo Histórico em CLOUSE, Robert G. Milênio: significado e interpretações. Campinas: Luz para o Caminho, 1990, p. 30
[3] JOHNSON, Elliott E. Prophetic Fulfillment: The Already and Not Yet em WILLIS, Wesley R. & MASTER, John (eds.) op. cit., p.191.
[4] cf. LADD George Eldon. op. cit., p. 26
[5] KAISER, Walter Jr. Hermenêutica Legítima em GEISLER, Norman (org.). Inerrância: uma sólida defesa da infalibilidade das Escrituras. São Paulo: Editora Vida, 2001, p. 165 (itálico nosso).
[6] BOCK, Darrell L. Evangelicals and the Use of the Old Testament in the New part 1, BSac 142:567 (Jul 85) p. 213 (itálico nosso).
[7] ICE, Thomas. op. cit., p. 38 (itálico nosso).
[8] BLAISING & BOCK, Dispensacionalism, Israel, and the Church: Assessment and Dialogue. p. 393 apud. WILLIS, Wesley R. & MASTER, John (eds.) op. cit., p. 38.
[9] MASTER, John R. The New Covenant em WILLIS, Wesley R. & MASTER, John (eds.) op. cit., p. 102.
[10] BLAISING & BOCK, Darrell L. Dispensacionalism, Israel, and the Church: Assessment and Dialogue. P. 393 apud. BOCK, Darrell L., Hermeneutics of Progressive Dispensationamism em BATEMAN, Hebert W. IV, Three Central Issues in Contemporary Dispensationalism: a comparison of traditional and Progressive Views. Grand Rapids: Kregel Publications, 1999, p.90.
[11] BOCK, Darrell L. em BATEMAN, Hebert W. IV, op. cit., p.90.
[12] Ibid., p.91 (itálico nosso).
[13] Não é o mesmo que sensus plenior.
[14] BOCK, Darrell L. em BATEMAN, Hebert W. IV, op. cit., p. 93.
[15] Ibid., p.97 (itálico nosso).
[16] Ibid., p.190.
[17] WILLIS, Wesley R. & MASTER, John (eds.) op. cit., p. 38.
[18] Os salmos contribuem muito para entendermos essa aliança. São vários os temas (1) o alcance internacional da vitória do rei (Sl. 2:8-12; 78:8-12; 89:25, 27; 110:2-6; 132:18), (2) a extensão da sua soberania (Sl. 2:8 89:25-27); (3) justiça do seu reinado em benefício do seu povo (Sl. 45:3-5; 72:2-4, 12-16); (4) caráter eterno do seu reinado (89:4, 28, 36-38; 110:4). cf. Darrell L. Bock, Covenants in Progressive Dispensacionalism em Three Central Issues p.185.
[19] ICE, Thomas. op. cit., p. 38.
[20] Estruturado de BOCK, Darrell L. Current Messianic Activity and OT Davidic Promise: Dispensationalism, Hermeneutics, and NT Fulfillment. 2002. Trinity Journal Volume 15.

Perfil

Minha foto
Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.