Somos mercenários! Aleluia!

As quartas-feiras dos cristãos evangélicos brasileiros são marcadas pelo chamado “culto de oração”. Ali os crentes apresentam seus desejos e agradecimentos. É um tipo de culto de “testemunho coletivo”. Uma das facetas interessantes desse tipo de culto é que pode-se conhecer muito do povo (igreja), pois nele há liberdade de expressão, algo quase ausente em outras programações. E é exatamente nesta “esfera espiritual” de compartilhar que, pasmem, podemos encontrar muitos testemunhos mundanos, na sua forma mais sutil, evidentemente. Especialmente, na área da vocação e financeira.

Vou criar uma situação para um melhor entendimento:

O pastor abre espaço para que os irmãos compartilhem seus pedidos e agradecimentos. O irmão “x” ergue o braço rapidamente e pede uma oportunidade para compartilhar uma grande bênção: “Pastor, queria agradecer, pois nessa semana recebi uma proposta de trabalho muito boa. Vou receber duas vezes mais do que ganhava”. “Aleluia” diz o irmão do lado. “Amém”, diz uma senhora à frente. Muitos meneiam a cabeça positivamente, outros arregalam os olhos admirados. Pensemos que na semana que se segue ao agradecimento, o pastor compartilha um outro agradecimento: “Queria compartilhar com os irmãos uma bênção. Estou deixando o ministério pastoral, pois recebi um convite para ser representante de uma multinacional”. “Irmãos, e o melhor, vou ganhar o dobro”. Diferente do “aleluia” e do “amém”, da semana anterior, silêncio sepulcral.

Tenho certeza de que o segundo testemunho não seria acompanhado por um “amém” eufórico em muitas igrejas. Antes, por críticas do tipo “mercenário”; “como pode, trocar a obra de Deus por dinheiro?”. Esse tipo de reação se dá por um motivo simples: as pessoas entendem que Deus só chamou os pastores. Vocação hoje está restrita ao ministério da Palavra, ou melhor, da igreja. Os irmãos podem trocar de profissão por dinheiro, mas o pastor não. Trocar de profissão com um impulso “estritamente” ou “fundamentalmente” financeiro é mundanismo. Não há dúvidas disso. Entretanto, nas quartas-feiras, isso muitas vezes é confundido com “bênção”. É como se dissessem: "Somos mercenários!!!". E os irmãos respondessem: "Aleluia!!!"

O assunto torna-se revelante por pelo menos três motivos: 1) O tempo envolvido no trabalho. A maior parte do nosso tempo devotamos, ou ao preparo para o trabalho, ou no próprio trabalho; 2) A “frustração vocacional” é uma das causas para distúrbios familiares e matrimoniais; e, como exemplificamos acima, 3) A visão errada sobre o trabalho e /ou vocação. Segundo Reich: “Para a maioria dos ocidentais, o trabalho é sem sentido, exaustivo, entediante, servil, odiento, algo a ser ‘agüentado’, enquanto a ‘vida’ consiste no ‘tempo de folga’” (The Greening of America, p. 4-7). Nas palavras de Michael Horton, trabalhamos para o final de semana (O Cristão e a Cultura, p. 135-58).

UMA VISÃO REFORMADA

Porque uma “visão reformada”? Das tradições cristãs (protestante, reformada, anglicana e anabatista, pentecostal, católica etc.) a visão reformada foi a que mais colaborou para uma visão bíblica de trabalho bem como impactou o ocidente por sua valorização.

1. Nossa Relação com o Mundo.

A visão calvinista ou reformada da nossa relação com o mundo abre nossa perspectiva quanto a vocação. Segundo Kuyper, o reformado “reconhece Deus no mundo. Deste modo a Igreja retrocedeu a fim de ser nada mais nada menos que a congregação de crentes, e em cada departamento a vida do mundo não foi emancipada de Deus, mas do domínio da Igreja. A maldição não deveria mais repousar sobre o mundo em si, mas sobre aquilo que é pecaminoso nele, e em vez de vôo monástico do mundo o dever de servir a Deus no mundo, em cada posição na vida, é agora enfatizado” (Abraham Kuyper, Calvinismo). Enquanto que no catolicismo o trabalho se impõe, simplesmente porque não se pode dispensá-lo e não tem nenhuma relação com a vida espiritual; para o calvinismo trabalho é uma atividade religiosa, espiritual visto ser considerado uma vocação.

A Teologia Reformada enfatiza o “mandato cultural” ou a obrigação dos cristãos viverem ativamente em sociedade e de trabalharem para a transformação do mundo e suas culturas. Não há uma separação entre o secular e o sagrado. Em Calvino há a “sacralização do secular”. O chamado “mandato cultural” na teologia reformada é fundamentado no mandato de dominar e cuidar da terra (Gn. 1.28). Os reformadores enfatizavam que esse mandamento é tanto anterior como segue a entrada do pecado no mundo. Assim, não se deve ver o trabalho como resultado do pecado, mas como algo esperado de todo ser humano. E o fato de possuirmos a imagem de Deus nos dá a capacidade de obediência.

2. Nossa Capacidade e Prazer – Um Reflexo da Graça de Deus e da Vocação.

Para o grande reformador de Genebra, as capacidades humanas são frutos da graça divina (Institutas, II, II, 17). Se temos capacidades, isso se deve a atuação de Deus em nossas vidas. Essa capacidade (algo objetivo e observável), juntamente com o prazer corretamente motivado (subjetivo) a ela (a vocação) relacionada, podem revelar, portanto, o plano de Deus para a vida do indivíduo – a sua vocação. Para muitos reformados (e.g., R. C. Sproul em Discípulos Hoje), desses dois elementos (capacidade e prazer corretamente motivado; objetivo e subjetivo), o segundo é o mais importante e, por isso, determinante. A motivação e o prazer são essenciais na escolha de uma profissão ou no reconhecimento da sua vocação.

3. As Dificuldades Decorrentes de se Desprezar a Vocação Divina.

Sem reconhecer nossa vocação, seremos movidos pela ambição e a cobiça. Essa não é a tônica somente nos cursinhos de vestibular, mas nos lares dos crentes. É comum ouvir os pais dizerem para os filhos: “Vai estudar para ser gente”. Ser “gente” em muitos dos que proferem essa sentença é o mesmo que trabalhar e ganhar dinheiro. Digo, ganhar dinheiro. Não são poucos os que erguem suas mãos nos cultos de oração e pedem que os filhos sejam aprovados no vestibular. A pergunta é: Por quê? Para quê? Resposta: “Ser gente”.

Vou dá um exemplo envolvendo meu filho. Houve uma época em que ele queria ser pedreiro. Quando comunicava esse desejo para alguns irmãos as reações, na grande maioria, eram de reprovação. Por quê? Simples: a profissão de pedreiro não tem status social, glamour, e, principalmente “segurança financeira”. A igreja está cheia da "Teologia do Tim Maia". O Cantor carioca dizia: "Ora bolas, não me amole com esse papo, de emprego. Não está vendo? Não estou nessa. O que eu quero? Sossego, eu quero sossego". Já estou ouvindo um amém!!!

Um outro problema em desprezar a vocação é que abarcaremos muitas coisas ao mesmo tempo. Não é difícil encontrarmos pessoas mudando de curso e emprego com muita facilidade. É verdade que muitos trocam de emprego por falta de opção, mas isso não representa toda a realidade. Na verdade, não são poucas as pessoas que ficam pulando de galho em galho, inconstantes. E a razão é simples: não tem foco, ou tem o foco errado (e.g., dinheiro, status).

Calvino destaca a inquietação e a inconstância como decorrente do desprezo à vocação. Para ele, se não entendemos vocação, não haverá clara consonância entre as diversas partes de nossa vida. Muitos dos problemas conjugais, familiares e da nossa relação com a igreja estão ligados a falta de compreensão de vocação. Segue alguns exemplos de problemas envolvendo a vocação: Maridos ou esposas frustradas; filhos pressionados; filhos revoltados, fracos, inseguros, membros deprimidos por não poderem estar em TODAS as programações da igreja.

E, por último, Calvino nos alerta para o fato de que quando desprezamos nossa vocação, muito do que se fizermos não será aceito por Deus, mesmo que inspire o louvor dos homens.

4. Os Benefícios de Seguir a Vocação Divina.

Todo trabalho certamente tem seus problemas. Eles podem ser salariais, estruturais ou sociais. Seguindo a vocação, entretanto, suportaremos melhor as desvantagens, preocupações, os aborrecimentos, as angústias, pois o veremos à luz do chamado de Deus. Daí a razão de Calvino entender que uma vez considerada com o devido respeito a “vocação é o princípio e fundamento baseados no qual podemos e devemos governar bem todas as coisas” (Institutas, IV, XVII, 45 [edição de 1541]). Quando considerada, teremos uma vida bem ordenada, dirigida e consolada.


obs.: Não estou afirmando que não podemos trabalhar para ganhar dinheiro. Paulo deixa claro que devemos trabalhar para ajudar os necessitados bem como não ser peso para outras pessoas e isso seguramente envolve finanças. A questão é que esse não deve ser nosso alvo primeiro e/ou único - o fundamento de nossas decisões.

obs.2: Muitas vezes podemos trabalhar fora da nossa vocação, mas o que não podemos é perdê-la de vista.

“...não há obra por mais humilde e humilhante que seja, que não brilhe diante de Deus e que não lhe seja preciosa, conquanto que a realizemos no serviço e cumprimento de nossa vocação. João Calvino, Institutas, 1541, 4. xvii, 45.

De onde procedem guerras e contendas que há entre vós? De onde, senão dos prazeres que militam na vossa carne? Cobiçais e nada tendes; matais, e invejais, e nada podeis obter; viveis a lutar e a fazer guerras. Nada tendes, porque não pedis; pedis e não recebeis, porque pedis mal, para esbanjardes em vossos prazeres. Infiéis. Tiago 4.1-4a

"Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição". 1Timóteo 6.9

O dia em que a verdade ficou do lado de fora.


“Quem quer a verdade?”, “Olha a verdade!”, grita o feirante na praça matriz em Aquiraz. Terá ele uma boa venda? Conseguirá vender tudo? Particularmente acho que não. O clima não está para verdade. O preço é alto e os concorrentes são muitos. Há quem se empolgue com ela, mas a euforia não dura muito. Alguns olham, outros tocam, há quem se arrisque a provar, mas logo cedem. A “verdade pura” que o feirante oferece ao povo da primeira capital do Ceará vem junta a um pacote com muitas consequências. Alguns tentam negociar comprando a verdade sem levar o pesado pacote, mas o feirante é duro; ele não sede. Para ele, meia verdade é uma mentira inteira.



Perto dali, na câmara dos vereadores, um grupo de agentes de saúde luta pelo aumento salarial. Na verdade, trata-se de um aumento no “incentivo”. A câmara está lotada. A ATA é lida, mas em vão, pelo menos para mim. O “zum zum zum” corre frouxo e impede que se escute as decisões da última sessão. Explico: são as agentes de saúde acertando os últimos detalhes para o grande momento.


A sessão começa e a pauta tão esperada é apresentada. A proposta colocada é de 30% acima do valor já oferecido, 90 reais, ou seja, as agentes de saúde passariam a ganhar 117 reais de incentivo. Depois de feitas as colocações por um dos vereadores que havia acordado com as agentes antes da sessão, o som das palmas enche a câmara. As agentes estão eufóricas. É o aumento que está chegando. Logo em seguida, outro vereador faz uma colocação importante: “o aumento poderia ser maior, talvez acima de quinhentos reais”. “Vocês se contentaram com pouco”, repreende o representante do povo. Novamente as agentes aplaudem. Podem-se ouvir palavras de ordem. Entretanto, o primeiro vereador rebate assegurando que outras prefeituras não repassam essa verba como estava sendo proposto.

A pergunta ficou no ar: Quem estava com a verdade? O primeiro vereador? O segundo? Seria o primeiro um cara “pé no chão” que estava cedendo o que podia do orçamento em benefício do povo ou estavam retendo o que não lhe era devido? Seria o segundo um cara chateado com o desperdício de oportunidades das agentes ou só soltou uma informação duvidosa para criar um rebuliço colocando em cheque a “bondade” da proposta apresentada? Não sei. Sinceramente, não sei. Qualquer palavra aqui seria injusta, pois falta-me informações. Mas, fiquei esperando um debate com informações sólidas e precisas. Afinal é justo o aumento? É irresponsável? Não sei. Só sei que quem estava lá ficou sem a verdade.

Olhei para os outros vereadores, e o silencio, digo, a indiferença descomprometida os anestesiou. O feirante estava do lado de fora. Ninguém bateu palmas para ele. Mesmo assim, ele gritava “olha a verdade”, “quem quer a verdade?”. Os vidros não deixavam sua voz ressoar na câmara. O salário aumentou na mesma proporção em que o interesse pela verdade se esvaio. Naquela tarde de aumento salarial, o povo se contentou com o dinheiro (pouco ou muito, justo ou injusto, não importa), e com nenhuma verdade. O que não sabem é que a vida sem verdade sai caro e não há salário que pague.

O feirante se foi. Quem sabe na próxima sessão ele consiga vender seu produto. Alguém me disse que ele tinha oferecido a verdade em uma igreja, mas achavam que estava possesso por demônios e o expulsaram. Em outra, o povo estava mais preocupado com a saúde, com o salário, com os bens e, como os vereadores silenciosos da câmara, simplesmente o ignoraram. Pobre feirante. Vende um produto caro e que poucos buscam.

Naquela sessão da câmara alguém raciocinou da seguinte forma: "para que a verdade, se temos um aumento?", ou, "Para que a verdade se posso me promover com informações duvidosas?" ou ainda, "Para que a verdade, se ela torna as coisas mais difíceis?". Nem todos pensaram assim, mas todos foram apáticos. Os vereadores que se manifestaram levantaram-se em nome da verdade, é fato, mas nenhum com a resolução e o amor que se exige de quem a anuncia. A apatia dos outros se manifestou no silêncio. A velha omissão dos fracos.

As palavras de Jesus me vêm à mente: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Liberta o povo de Aquiraz Senhor.

Perfil

Minha foto
Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.