Critérios do cânon


Existem temas que vez por outra surgem em nossas discussões sobre Bíblia. Um deles é o cânon. O assunto pode ser desenvolvido por inúmeras perspectivas. No caso do artigo que segue, desenvolverei a questão dos "critérios de canonicidade".

Antes de considerar os critérios, torna-se necessária uma palavra sobre a legitimidade ou inautenticidade dos mesmos: 1) Todos os critérios são considerados inválidos caso sejam absolutizados. Nenhum critério sozinho determina a aceitação de um livro no cânon. 2) Os critérios devem possuir caráter eliminatório. Ou seja, devem ser os mais específicos possíveis a fim de eliminar uma obra qualquer e reconhecer (não determinar) uma obra singular.

CRITÉRIOS INVÁLIDOS.

ESCRITOS EM HEBRAICO OU GREGO.

Tanto os hebreus quanto a igreja primitiva possuíam uma vasta literatura em ambas as línguas. Nesta havia livros sagrados e selecionados. A despeito do número de livros escritos em grego e hebraico, o tratamento dado a eles não era idêntico. Harris nos fornece um exemplo:

Referencias aos extensos índices de Rabin na sua edição de Fragmentos Zadoquitas mostrará que embora as Escrituras canônicas sejam citadas repetidamente com frases que determinam autoridade tais como "está escrito", "Deus disse", "como falou por mão do profeta", etc. nunca sequer uma vez são os livros apócrifos citados assim.

Soma-se a isso o fato de que existem muitos livros escritos em hebraico e grego que são fontes de discordância direta com o material bíblico. O apócrifo Macabeus, por exemplo, incentiva a oração pelos mortos. Pode-se ainda assegurar que há seções de alguns livros aceitos no cânon sagrado que não foram escritos em hebraico (Dn. 2.4b-7.28 e Ed. 4.8-6.18; 7.12-26).

ANTIGUIDADE.

Geisler e Nix combatem esse critério com as seguintes palavras:

[…] muitos livros velhíssimos, como o livro dos justos e os livros das guerras do Senhor […] nunca foram aceitos no cânon. […] há evidências de que os livros canônicos foram introduzidos no cânon imediatamente, e não depois de haverem envelhecidos. É o caso dos livros de Moisés […], de Jeremias […] e dos escritos do Novo Testamento produzidos por Paulo.

CONCORDÂNCIA COM A TORÁ

Contra esse critério temos o fato de que muitos textos que estavam de acordo com a Torá não foram aceitos como canônicos. Exemplos claros de literaturas aceitas como concordante com a Torá são o Midrash e o Talmude. Além disso, Geisler e Nix nos alertam para o fato de que tal concordância é insatisfatória "porque não explica o que foi que determinou a canonicidade da Torá".

ACEITO POR CONCÍLIO.

A inautenticidade desse critério se dá primeiramente pela própria natureza autoritativa da obra. Como um concílio poderia ter autoridade para revelar quais seriam os livros divinos? Dessa forma o concílio teria a palavra final – canônica. A igreja não pode julgar as Escrituras. Piper nos lembra que "uma das descobertas básicas dos reformadores foi que nem a autoridade, nem a interpretação das Escrituras deriva da igreja".

Em segundo lugar, no tocante ao Antigo Testamento, "não há evidência de um apelo a um concílio desse tipo para estabelecer a canonicidade de um livro". O caso de Jamnia, "não foi um concílio e […] não promulgou nenhuma decisão". "Quando os rabis de Jamnia consideraram Eclesiastes, eles apelaram às decisões de rabis anteriores, não a um concílio".

Quanto ao Novo Testamento, usaremos as palavras de Herman Ridderbos, "Um julgamento histórico não pode ser a única e final para a aceitação do Novo Testamento como canônico pela igreja. Isso significaria que a igreja basearia sua fé em resultado de investigação histórica". Sawyer vai além ao assegurar que "a igreja antiga nunca chegou a uma decisão fechada e consciente quanto a extensão do cânon". E continua: "O Novo Testamento não foi fechado no quarto século". Para Sawyers, os concílios que são geralmente citados (e.g., Hipona e Cartago) foram locais.



Ainda sobre as limitações dos concílios Elert nos alerta para o fato de que "O cânone foi limitado em conexão somente com uma decisão a respeito da Antilegômina, [sic] […] Com respeito à Homologoumena o sínodo não poderia resolver mais a questão, já que era pressuposto tanto por ele quanto por Atanásio".

Sobre o conceito de cânon anterior aos concílios ficamos com as palavras de Justus Gonzalez:

[…] o conceito de cânon ou de uma lista fixa de livros cristãos inspirados, a origem da noção de existência de tais livros é muito anterior a Marcião. Desde sua origem, a igreja adotou o Antigo Testamento como Escritura; e desde uma data muito antiga, havia escritos cristãos que eram usados como Escritura juntamente com o Antigo Testamento.

CRITÉRIOS VÁLIDOS

Os estudiosos que lutam com esses critérios se dividem basicamente em dois grupos. De um lado estão aqueles que enfatizam a autoridade do conteúdo da obra ou do autor, e do outro, os que enfatizam a autoridade da comunidade receptora.

AUTORIDADE DE UMA LINHAGEM PROFÉTICA (APOSTÓLICA).

Para aqueles que enfatizam a autoridade dos autores; o que não era visto como profético não era visto como Palavra de Deus. Moisés é o protótipo de todos os demais profetas. Harris esclarece:

Moisés, o grande precursor da linha profética, especificou testes a serem aplicados para determinar a realidade a autenticidade da profecia. Devemos considerar não só os testes claros descritos em Deuteronômio 13 e 18 e o poder de operar milagres (Êx 4.1-9, Is 38.7-8), mas também o grande modelo da verdadeira profecia encontrado nos escritos do próprio Moisés, qualquer coisa que não estiver de acordo com a fonte da verdade era ipso facto um profecia falsa. Mas quando todos os testes eram aplicados e o profeta era reconhecidamente visto como verdadeiro, suas palavras e seus escritos eram recebidos logo pelos fiéis como sendo a Palavra de Deus, isto é, canônicos.

Assim, para Harris, e todos os outros que enfatizam a autoria, "o último na tradição não é um concílio, e sim um homem a quem Deus falou – um profeta". Por profeta entenda-se "todos os falam o que o Senhor os entregou". Dessa forma, Davi, Josué, Salomão e outros são igualmente considerados profetas. Para aqueles que entendem profeta como ofício, as palavras de Harris podem ajudar: "Não encontramos menção de uma cerimônia para a iniciação de um profeta. Ele não era coroado como um rei, nem consagrado como um sacerdote. A unção dele era espiritual e divina".

Voltando a figura de Moisés, "[…] o antigo Israel cria que Moisés o tinha escrito como porta-voz de Deus. Não há voz discordante. E será que não ficou claro que precisamente essa a razão pela qual o antigo Israel o recebeu como possuindo autoridade, isto é, como canônico?".

"O princípio de canonização do Pentateuco, que orientou o Israel antigo, até onde temos qualquer evidência que seja é: Ele veio mesmo do grane porta-voz de Deus, Moisés?". Começando em Moisés, pois, "o cânon cresceu à medida que os profetas sucediam um ao outro no seu ministério". Os profetas que seguiram Moisés foram avaliados pelo próprio, pois o próprio Moisés forneceu testes para avaliação dos profetas que o seguiriam (cf. Dt. 13.1-5; 18.20-22).

Deixando Moisés, mas ainda na tônica da autoridade autoral, Warfield nos lembra que a questão da autoridade apostólica não é uma referência a produção do texto, mas "a imposição pelos apóstolos como lei". Em outras palavras "sanção ou chancela apostólica". A sutileza de Warfield permite a inclusão de livros como Lucas, Marcos, Tiago e Hebreus que não foram escritos por profetas e/ou apóstolos.

AUTORIDADE INERENTE (CONTEÚDO).

Para Ladd:
Em certo sentido, os escritos canônicos são semelhantes a outros documentos antigos pelo fato de preservarem os produtos históricos e literários dos homens que viveram em um ambiente histórico distante do nosso, visando atender a objetivos específicos imediatos. Contudo, há uma diferença fundamental: os escritos das Escrituras canônicas participam do caráter da história sagrada. […] falta aos livros não-canônicos o senso de história sagrada encontrado nos livros canônicos.

Seguindo Ladd, Hans von Campenhausen assegura que "é o conteúdo do testemunho profético ou apostólico que é decisivo". O força desse critério é mais intensa no seu aspecto negativo, ou seja, na eliminação de obras que em seu conteúdo não reivindicam autoridade profética ou possuem erros geográficos, cronológicos, históricos, bem como discrepâncias teológicas.

TESTEMUNHO DA COMUNIDADE.

Por testemunho da comunidade não se está afirmando o mesmo que aceitação de um concílio posterior. Antes, faz-se referência ao fato de que a palavra dos profetas se dava na comunidade e esta, por sua vez, tinha um papel de testemunho relevante. As considerações de Robert Vasholz nos ajudam:

Predições de curto prazo permitiam a um verdadeiro profeta se estabelecer visto que muitas destas predições foram testemunhadas em público e conhecidas de muitos (cf. 1Re. 13.11; 22.10; 2Re 3.12; 5.2-3; 6.12). […] Os profetas não era um grupo desconhecido ou clandestino cujos feitos recebiam pouco reconhecimento. Falhar em ter suas predições realizadas certamente impugnaria suas reputações.

O aspecto negativo desse critério também tem sua importância. Os apócrifos nunca receberam o testemunho positivo quanto à sua autoridade canônica. Esse "rejeição" se estende até Cristo e seus apóstolos.

AVALIAÇÃO SOBRE A VALIDADE DOS CRITÉRIOS.

A INTERDEPENDÊNCIA DOS CRITÉRIOS.

Não há obra literária ligada à temática do cânon que use um único critério de autenticação. Geisler e Nix, por exemplo, propõem cinco princípios usados pela comunidade. São eles: 1) Autoridade do livro; 2) Autoria profética; 3) Confiabilidade; 4) Natureza dinâmica; 5) A aceitação do livro. A despeito do uso de vários critérios, muitos estudiosos defendem um "critério primário". No caso da igreja católica ou da teologia canônica, a comunidade seria o "critério primário". O protestantismo fica divido. Ora o critério primário fica na autoridade autoral, ora no conteúdo. O fato é que não há um único critério primário; antes, uma dinâmica entre eles. Segue a argumentação:

Quando Harris chama para Moisés (ou à autoridade profética) o critério final, não se pode esquecer que essa mesma autoridade se dava por sinais junto à comunidade. É fato que ela (a comunidade) não determinava, mas não podemos negar sua importância. Além disso, como nem tudo que o profeta ou apóstolo escrevia era necessariamente e/ou automaticamente inspirado, era necessário uma análise do conteúdo que revelava um apelo autoritativo divino além de outros sinais esperado de uma obra divina como coerência teológica, histórica e geográfica. Foi na dinâmica desses três elementos (critérios) que a Escritura chegou até nós.

Mais do que a dinâmica profeta-povo-conteúdo; há uma interdependência entre eles. O fato é que não existe profeta sem sinais proféticos que o chancelem diante do povo. Da mesma forma um conteúdo destituído de autoridade profética não passa de bons conselhos.

Não há tensão entre a autoridade da igreja (comunidade receptora) e os autores (conteúdo). Autoridade externa (igreja) ou interna (autor/conteúdo). O que temos é interdependência.

Findo com as palavras de Alister Mcgrath:

Tem havido recentemente um progressivo reconhecimento do fato de que a comunidade da fé e as Escrituras, o povo e o livro coexistem mutuamente, e que as tentativas de traçar nítidas linhas divisórias entre ambos são um tanto quanto arbitrárias. O cânon das Escrituras pode ser considerado como algo quer surgiu de uma forma orgânica, a partir de uma comunidade de fé já comprometida em usá-la e respeitá-lo.

CRITÉRIOS A POSTERIORI

Se seção anterior nos esclarece sobre a relação interdependente dos critérios, essa nos alerta para as nossas limitações em reconhecer esses critérios.

Todos os critérios contribuem para nossa convicção quanto à chegada das Escrituras até nossos dias, nenhuma delas, porém, responde completamente a questão, pois a todos os critérios são a posteriori. As palavras de Ridderbos esclarecem:

Como suas artificialidades indicam, esses argumentos são a posteriori em caráter. Sustentar que igreja foi levada a aceitar esses escritos por tais criteria é ir longe demais pois estamos falando de criteria canonicitais. É bastante claro que nossas tentativas cobrir com argumentos o que já foi fixado por muito tempo serão mais ou menos bem sucedidas.

Uma das implicações em reconhecer o caráter a posteriori dos critérios de canonicidade é que elas podem estabelecer um cânon acima do cânon entrando assim em conflito com a natureza do cânon em si. Se basearmos nossa crença no cânon em outro cânon, o primeiro perdera o status de cânon. Assim, os dados históricos e os outros critérios são auxiliares para entendermos o processo porque já partimos do fato de ser a Palavra de Deus.

Não podemos esquecer que se a Bíblia é o que afirma ser, ela é auto-autenticante; não há nada fora dela mesma que possa avaliá-la. Nas palavras de Grier: "A apologética autopística pressupõe que a Bíblia é verdade e então argumenta a partir da Bíblia pra mostra que ela (a Bíblia) é autoritativa". E ainda: "Todo sistema tem um ponto de partida auto-referencial que não pode ser validado por uma autoridade". Autoridades últimas não podem ser validadas por apelos a outras autoridades, pois seu caráter último é obviamente perdido.

Ponderações na hermenêutica de J. S. Croatto.

Todas as ponderações feitas sobre J. Severino Croatto foram extraídas de sua obra Hermenêutica Bíblica: para uma teoria da leitura como produção de significado. Tradução: Haroldo Reimer.

A linha hermenêutica seguida por Croatto

Os elementos básicos de qualquer abordagem hermenêutica são: o papel do autor, do texto e do leitor e sua relação com o significado. 1) Quanto ao autor: para Croatto, o autor está morto. A intenção autoral, portanto, não determina o sentido e nem sequer deve ser encontrada; ele morreu. Restaram o texto e o leitor. 2) O texto: trata-se de uma leitura (enclausuramento) de acontecimentos polissêmicos que, devido a morte do emissor no processo de tradição (transmissão) torna-se polissêmico. 3) Leitor: parte de sua realidade buscando novos sentidos e leituras. Leitura é produção de sentido ou “fechamento de sentido”. Por suas características supracitadas enquadramos sua hermenêutica na chamada “Hermenêutica da Suspeita” (cf. LOPES, Augustus N. A Bíblia e Seus Interpretes. p. 236-7).
A “autonomia do texto”

Antes de nos atermos a “autonomia do texto”, precisamos apresentar a visão de Croatto sobre o fenômeno da “fala”, seu sentido e sua relação com a “língua” e o “texto”.

Seu entendimento sobre “texto” decorre da distinção feita pela lingüística entre “lingua” (langue), “discurso” (parole) e “texto”. Em toda língua (sistema de leis e signos que regula a gramática e a sintaxe) há um “potencial polissêmico” que é “fechado” ou “enclausurado” (tornando-se monossêmico) no ato do discurso (fala, langue).

O sentido de um determinado discurso é “fechado” ou “enclausurado” porque há um contexto e/ou horizonte de compreensão comum ao emissor e ao receptor (narratário) que permite fazer coincidir a referência ou a denotação. Neste quadro não há autonomia do texto; antes, “fechamento” de sentido. Esse fechamento se dá na distanciação de língua e discurso – langue e parole – polissemia e monossemia. Discurso é “dizer algo sobre algo” (p. 11), caso haja polissemia, não há comunicação ou entendimento. Que fala toma da “língua” todo seu potencial polissêmico e o enclausura para comunicar.

A “separação” entre língua e discurso não é a única na linguagem. O “discurso” pode tornar-se “texto”. Temos então a segunda distanciação. Para Croatto “texto” é um “discurso cristalizado” e “transmitido” (p.11). No “discurso” temos “linguagem inlocucional” (entonação, gestos) e locucional (como se diz); o mesmo não acontece no “texto”, pois o primeiro interlocutor já não está mais presente. Enquanto o autor do “discurso” nunca morre porque está presente fisicamente, o mesmo não se dá com o “texto”. O autor está morto. E só ficou o “texto”, e semelhante à “língua”, polissêmico. Como o autor não está presente para “fechar” o sentido, o texto agora não tem dono; é autônomo.

Ora, se o autor não está presente, só temos o “texto” e seu “novo” interprete condicionado ao seu contexto histórico-social. Há, pois, uma altercação de contextos e/ou horizontes. Agora temos dois mundos – o do texto (autônomo) e do interprete. E, nas palavras de Heidegger, o “estar-em” o mundo condiciona a interpretação. “Substitui-se o horizonte finito do autor pela infinidade textual” (p. 13).

Leitura como uma produção de sentido

Para entender leitura como produção de sentido, faz-se necessário uma palavra sobre a relação entre o autor e o sentido; a natureza do texto e o ato da leitura. Segue, pois:

1. Autor e Sentido: Para Croatto “sentido” não é algo objetivo e particular que pode ser encontrado através da habilidade do uso de recursos filológicos e históricos. “Sentido” não pode coincidir com intenção autoral. O autor está morto. Tentar “fechar” o sentido de um texto é vão e irreal.

2. A Natureza do Texto: Todo texto é polissêmico. Não se lê sentido, lê-se texto, que por sua vez produz sentido. “A linguagem […] combina tantos elementos sêmicos que nenhuma análise pode manifestá-lo por completo” (p. 14 – itálico nosso). “Toda leitura é produção de discurso e, portanto, de sentido” (p. 14). O texto sempre estará pronto a um novo sentido, recriando constantemente sua mensagem.

3. O Ato da Leitura: Leitura é “seleção de códigos”. O texto é uma estrutura de códigos polissêmicos que insta por produção de sentido. “O discurso coloca em jogo uma pluralidade de códigos que cada leitura [interprete] seleciona e organiza” (p. 15).

4. Conclusão: Texto polissêmico; autor morto e leitura como seleção de códigos segue uma apropriação e/ou produção de sentido determinada pelo leitor. Sentido produzido não é uma repetição do primeiro sentido, mas um esgotamento de sentido.

A “reserva de sentido” do texto.

Parte fundamental sobre essa questão foi colocada na questão anterior. Completemos a: Todo texto tem um “adiante”. Pela própria natureza ou condição lingüística, nunca um texto será explorado na sua totalidade. Sempre poderemos fazer “outras leituras”. Para Croatto Lucas 24, por exemplo, é uma releitura de Isaías 53, que por sua vez é produto de outra leitura. Isso se dá não devido a ambigüidade do texto, mas porque é “suscetível a dizer muitas coisas ao mesmo tempo” (p.14 – itálico nosso), afirma Croatto, usando as palavras de J. Greimas.

É importante a ressalva de que “Reserva de Sentido” não constitui o mesmo que “significa qualquer coisa”. Nas palavras de Croatto, “um texto diz o que permite dizer. A sua polissemia surge de sua clausura prévia” (p. 47).

A clausura e a polissemia no “processo hermenêutico”.

Para Croatto há uma alternância entre a polissemia do texto e a monossemia da leitura no processo hermenêutico. Ou seja, se por um lado todo texto é polissêmico; do outro, toda leitura é “enclausuradora”, pois todo interprete procura esgotar o sentido do texto não permitindo assim outra “leitura”.

Entre o discurso e sua cristalização (o texto) há uma “distanciação” que converte monossemia em polissemia (desenvolvido na questão 2). O mesmo acontece (numa ordem inversa) na relação entre texto e leitura. Se em um texto tem vários sentidos, o mesmo não se dá com a leitura. Essa leitura, por sua vez, se tornará um “texto” aberto a vários sentidos e releituras futuras visto que o autor-interprete-leitor estará morto e/ou não presente. Essa distanciação progressiva do sentido original gera uma “convergência de leituras” e/ou “acumulação de sentidos” cumprindo assim uma função interpretativa e/ou hermenêutica.

O processo hermenêutico na história do cânon.

Todo texto parte de um acontecimento. Ao narrar um fato para celebrá-lo efetua-se uma seleção privilegiando uma experiência e deixando outras. Por ser uma interpretação, é uma forma de “clausura de sentido”; caso contrário não seria inteligível. Em um segundo momento essa interpretação torna-se tradição. E novamente teremos a distanciação entre fato e primeira interpretação abrindo esse texto a novas releituras.

Sobre o relato (texto) bíblico que decorre dos acontecimentos que o excitaram Croatto diz: “A redação atual dos relatos bíblicos tem a vantagem hermenêutica de estar muito distante dos acontecimentos” (p. 24-5 – itálico nosso). Essa interpretação por sua vez se cristaliza ou se enclausura necessitando outras interpretações-leituras. Temos novamente a alternância polissemia e monossemia – acontecimento e interpretação.

Essa cadeia hermenêutica: acontecimento polissêmico > Interpretações monossêmica > polissemia > tradições monossêmicas “chega a um momento de maior tensão em seu crescimento de sentido: ou se divide ou se enclausura em um cânon, o qual também excluirá aspectos da tradição, o que equivale a originar alguma divisão” (p. 27). O Cânon é um fenômeno de clausura que exclui outras leituras de uma tradição antecedente. “O acontecimento-sentido está recolhido agora em um texto-sentido que tem a força de ser uma Escritura” (p.28). A Bíblia, pois, antes de ser “palavra de Deus” foi “acontecimento de Deus” (p. 26).

A pretensão do cânon de fechar o sentido é irreal e ilusória, pois no mesmo instante que enclausura, pressiona a polissemia do acontecimento e do próprio relato. É impossível deter a releitura e/ou interpretação (e.g., comentários; os pais da igreja). “O processo interpretativo não pode ser fechado” (p. 29). “A história do cânon das Escrituras é parte de um processo hermenêutico e este é parte da história das tradições” (p. 29).

A “fusão de horizontes”.

O tema “fusão de horizonte” surge no contexto de pertinência da palavra de Deus para diferentes classes sociais. Se um dos principais “eixos hermenêuticos” da Escritura é o da libertação da opressão; como ficam os ricos em relação às Escrituras? Primeiramente Croatto deixa claro que a Bíblia pode-se dirigir a todos. Isso se dá porque “cada classe social é interdependente com a outra”. Por outro lado, para Croatto “a Bíblia como totalidade, […] tem uma incrível propriedade de ser escutado e compreendido pelos carentes desse mundo” (p. 38).

Para Croatto a classe social de uma pessoa afeta sua visão das Escrituras porque “cada práxis constitui um horizonte de compreensão” (p. 38 – itálico nosso). Como Horizonte de produção de sentido do emissor da Bíblia é equivalente ao horizonte de compreensão dos humildes (oprimidos) da terra, a palavra torna-se mais pertinente para estes. Há um marco referencial comum entre emissor e receptor. Os horizontes se fundem.

A intertextualidade e intratextualidade da Bíblia

Intertextualidade faz referência à relação entre textos enquanto intratextualidade diz respeito à junção de textos formando um só. Pressupondo como corretas as reconstruções da formação dos textos feitas pela crítica histórica somando-as às suas convicções lingüísticas (e.g., morte do autor), Croatto conclui que a Bíblia é a conversão à intratextualidade de várias tradições díspares (intertextualidade), interpolações e acréscimos dando a idéia de um livro só. Falar de Antigo e Novo Testamento, portanto, pode ter sua utilidade, porém aniquila o esforço da igreja em “construir” um único texto (intratextualidade).

O “eixo semântico”.

Entende-se que a Bíblia (palavra de Deus) originou-se na gênese do povo de Israel em um processo de libertação da opressão do Egito (acontecimento de Deus). Esse tema fomentador da “palavra” delonga-se até o Novo Testamento com a mensagem salvífica de Jesus aos oprimidos de qualquer espécie. Ou seja, mesmo com a transposição de contextos, leituras e releituras, a mensagem de libertação ecoa em todo registro bíblico. Como a formação do cânon da Bíblia é uma “palavra” enclausuradora de sentido em um único texto (intratextualidade), é possível reconhecer orientadores de produção de sentido. Esses são os chamados “eixos semânticos” ou “centros de gravidade”. Além de “libertação”, há vários outros “eixos semânticos” (e.g., justiça).

A Bíblia é a nossa palavra de Deus” segundo o conceito do “processo hermenêutico”.

Para Croatto o processo hermenêutico infindável de alternância polissemia-monossemia elimina da Bíblia o status de “depósito fixo de significado”. Antes, ela é uma reserva inesgotável de sentido. A cada nova leitura há uma “convergência de leituras” e/ou “acumulação de sentidos”. Como “reserva de sentido” a Bíblia não “diz”, ela continua “dizendo” para mim, porque a “Escritura se faz Palavra, a Palavra se faz Escritura” (p. 48). Nesse sentido a Bíblia é minha palavra de Deus porque parto do meu horizonte vivencial.

Crítica a Croatto:

1. A hermenêutica de Croatto nega o sentido único defendido pelos reformadores. Para ele todo texto é polissêmico e produtor de sentido.
2. A hermenêutica de Croatto nega o sentido como vinculado à intenção do autor. Para Croatto o autor do texto morreu. Só temos o texto e o leitor.
3. A doutrina da inspiração é negada por Croatto ao entender que a Bíblia tem contradições e ao negar seu caráter sobrenatural e autoritativo.
4. Diferente dos reformadores, Croatto entende que nunca podemos “extrair” o sentido do texto (exegese); mas entra-se no texto (eisegese) a partir do horizonte vivencial do leitor. Nunca podemos “tirar” objetivamente do texto a intenção do autor.
5. Como obra descritiva do processo hermenêutico Croatto é preciso em muitos aspectos. Muito da hermenêutica pratica no dia a dia é mais produção de sentido do que extração de sentido.

História e cristianismo em J. G. Machen

1 INTRODUÇÃO

O Fundamentalismo foi um movimento marcante de reação à entrada do Liberalismo Teológico nos arraiais das igrejas protestantes americanas no início do século XX. O termo “Fundamentalismo” é uma referência direta à obra de doze volumes intitulada The Fundamentals lançada em 1910. Seu conteúdo professou guerra aberta contra o ateísmo, o catolicismo, o socialismo, a filosofia moderna, o mormonismo, o espiritismo e muitos grupos semelhantes, mas principalmente, a Teologia Liberal “que se baseava numa interpretação naturalista das doutrinas da fé, a alta crítica alemã e o darwinismo, que pareciam subverter a autoridade da Bíblia” (MCINTIRE em ELWELL, 1992, v.2, p. 187).

Duas informações nos fornecem uma noção do impacto da obra: 1) O número de exemplares: Foram três milhões de cópias distribuídas gratuitamente por todo território americano. 2) As denominações incluídas: A obra teve a co-autoria de presbiterianos, batistas e anglicanos de vários lugares como Inglaterra, Escócia, Canadá e EUA.

Há historiadores como Roger E. Olson que dividem o fundamentalismo em duas fases: moderada e extremista (cf. OLSON, 2001, p. 576-84). Para ele, Machen e The Fundamentals fazem parte dessa primeira fase moderada. Mcintire divide a história do fundamentalismo em quatro fases (cf. MCINTIRE, 1992, p. 187-90).

Em sua primeira das quatro fases, o Fundamentalismo lutava pelos elementos fundamentais da fé cristã. Entretanto, não demorou muito e “a lista dos inimigos tornou-se mais estreita e os fundamentos, menos abrangentes” (MCINTIRE, 1992, p. 187) desviando o movimento do seu foco inicial. É na primeira fase, nesse cenário turbulento de luta direta contra o Liberalismo, que surge a figura de J. Gresham Machen.

Machen está ligado (como um protagonista de valor) a quase todas as obras literárias quando a matéria é a controvérsia Fundamentalismo-Liberalismo (cf. PIERARD em ELWELL, 1992, p. 424-29; CAIRNS, 1995, p. 420-33; HART, 1993; DOLLAR, 1962; NOLL et. al, 1983, p. 378-82; MCINTIRE, 1992). Apesar de não apreciar a denominação “fundamentalista”, Machen e o Fundamentalismo (da primeira fase) tinham um inimigo comum – o Liberalismo. Nas palavras do próprio Machen: “Na presença de um grande inimigo comum, eu tenho pouco tempo para atacar meus irmãos [fundamentalistas] que permanecem comigo na defesa da Palavra de Deus” (STONEHOUSE, 1954, p. 337-8). Ele acreditava viver em tempos de conflito. Em suas palavras, “O presente não é tempo para tranqüilidade ou prazer, mas para seriedade e obra súplice” (MACHEN, 2001, p. 172).

Para muitos, Machen foi o principal teólogo do movimento (OLSON, 2001, p. 557). A explicação para tamanha reputação se encontra em sua erudição, mas principalmente, por sua obra Cristianismo e Liberalismo onde se propõe demonstrar que o “Liberalismo moderno […] não é cristão” (MACHEN, 2001, p. 18).

Por sua erudição, por seus feitos numa época marcante para o protestantismo, pelo impacto e, principalmente pela natureza holística de sua obra, justifica-se uma análise cuidadosa de sua vida e obra. Todavia, devido às limitações de espaço, nos deteremos a um aspecto marcante de seu material apologético: O assentimento da historicidade dos eventos bíblicos como fator indicador da autêntica ortodoxia cristã.

O artigo que segue trará uma breve biografia de Machen seguida de uma análise de sua magnum opus (Cristianismo e Liberalismo); em seguida exporá a importância da história no cristianismo tendo o Liberalismo e a Neo-ortodoxia (dois fenômenos confrontados por Machen) como contraponto. Por fim, uma palavra sobre a perspectiva de Machen quanto à crítica histórica.

2 UMA BREVE BIOGRAFIA (cf. STONEHOUSE, 1954; NICHOLS, 2004; KELLY, Em ELWELL, v. 2, p. 463-4. MACHEN, 2001, p. i-iv).

Nascido em Baltimore em 28 de julho de 1881, John Gresham Machen era parte de uma família presbiteriana próspera, tanto financeira quanto culturalmente. Seus pais, Arthur W. Machen e Mary G. Machen o introduziram em um estilo de vida que combinava piedade e intelectualidade. Machen sempre foi encorajado a buscar o melhor da educação. Por exemplo, logo cedo foi acostumado a falar francês em casa. Sobre sua erudição e embates com os liberais, Olson diz que “Seus oponentes teológicos liberais não conseguiram encontrar nenhuma falha em sua erudição e nem demiti-lo taxando-o de obscurantista demente, como costumava fazer com outros fundamentalistas” (OLSON, 2001, p. 577).

Formou-se com honras (primeiro da turma) na Universidade de Johns Hopkins em 1901, e logo após estudou um ano com o famoso estudioso do grego bíblico B. L. Gildersleeve (na época, presbítero de sua igreja). Em 1902 se matriculou em Princeton. Em 1905 concluiu sua graduação. Lá, estudou com homens como B. B. Warfield e Greahardus Vos. Após a conclusão dos seus estudos em Princeton (1905), foi convidado por Francis L. Patton e William P. Armstrong a ser instrutor de grego bíblico. Porém, preferiu ir a Alemanha estudar em Marburg e Göttingen. Lá estudou um semestre em cada instituição. Teve como um de seus mestres o famoso liberal Wilheim Herrman. A despeito da extraordinária influência de Wilheim Herrman e da crise teológica decorrente dessa, Machen, com ajuda de B. B. Warfield, Patton e Armstrong, persistiu numa visão conservadora quanto às Escrituras.

De volta ao território americano, aceitou o convite de ensinar grego bíblico em Princeton. Na época, o livro texto era Essentials of New Testament Greek de Huddlestone. Por considerá-lo “pobre e escasso”, Machen o complementou com exercícios extras produzidos por ele mesmo. Em 1923, suas notas de aula se converteram em New Testament Greek for Beginners. Sem dúvida, uma obra marcante para todos os estudantes iniciantes de grego do Novo Testamento do século XX.

Em 1920 Machen teve sua primeira participação controversa em sua denominação. Valdeci da Silva Santos nos explica:


Naquela ocasião [Assembléia Geral], os delegados da reunião deveriam votar o Plano Filadélfia, que previa a coalizão de dezenove pequenas denominações presbiterianas em uma única denominação nacional. […] contrariando os colegas de cátedra [Joseph Ross Steveson e Charles Eerdman], Machen se opôs ao plano, por entender que ele pretendia uma reunião jurídica e uma pluralidade teológica indesejável (SANTOS, 2004, p. 152).
Em 1923 Cristianismo e Liberalismo, um marco para o fundamentalismo, foi lançado confrontando não somente o Liberalismo como todos os que o toleravam. A obra evidenciou ainda mais as diferenças entre liberais e ortodoxos que, até então, ainda coexistiam nas mesmas denominações e instituições de ensino. Algumas das novas denominações criadas a partir de 1930 foram: Igrejas Fundamentalistas Independentes dos Estados Unidos (1930); Associação das Igrejas Batistas Regulares (1932); Igreja Presbiteriana Ortodoxa (1936); Igreja Presbiteriana Bíblica (1938) e Associação Batista Conservadora dos Estados Unidos (1947).

Com a persistência da Presbyterian Church in the U.S.A. (doravante, PCUSA) e Princeton em tratar as diferenças nas instituições como questões meramente administrativas e não doutrinárias, Machen, após muitas lutas, deixa Princeton em 1929 para fundar no dia 25 de setembro do mesmo ano o Seminário Teológico de Westminster. Depois da derrota no tocante a Princeton, Machen perdeu a luta com respeito à Junta de Missões Estrangeiras. Foram várias as acusações feitas ao Teólogo de Princeton. Dentre elas: falta de zelo e fidelidade em manter a paz na igreja (MACHEN, 2001, p. iii). No dia 29 de março de 1935 foi suspenso do ministério da PCUSA. Em 1936, junto com outros cinco mil conservadores fundou a Igreja Presbiteriana da América, que posteriormente foi denominada Igreja Presbiteriana Ortodoxa (OPC).

Resistindo aos conselhos de amigos, Machen foi para o Estado de Dakota do Norte em resposta a um convite para pregar. No decorrer da viagem contraiu pneumonia e no primeiro dia de 1937 veio a falecer com apenas 55 anos de idade. Como Calvino e outros grandes homens que representam uma era, Machen teve um fim prematuro. Suas últimas palavras foram: “Sou grato pela obediência ativa de Cristo sem a qual não há esperança” (MACHEN, 2001, p. iv).

3 CRISTIANISMO E LIBERALISMO, SUA MAGNUM OPUS.



A produção literária de Machen é extensa; inclui artigos, pregações e livros. De todas elas, Cristianismo e Liberalismo é, sem dúvidas, a mais emblemática. Stonehouse, um dos grandes biógrafos de Machen, dedica um capítulo inteiro sobre a obra (STONEHOUSE, 1954, p. 336-50). Aqui queremos alistar duas possíveis razões para sua proeminência: 1) A repercussão e 2) Seu conteúdo holístico.

3.1 A Repercussão.

Nenhum livro faz sucesso somente devido ao seu conteúdo. É na sintonia entre conteúdo e o “espírito de mundo” (zeitgeist) e/ou contexto histórico que encontramos a fórmula do sucesso. Faz-se, pois, necessário uma palavra sobre o contexto histórico de Cristianismo e Liberalismo.

Segundo Stephen J. Nichols: “O contexto imediato de Cristianismo e Liberalismo é o sermão pregado por Harry Emerson Fosdick no dia 21 de maio de 1922 cujo título era ‘O Fundamentalismo ganhará?” (NICHOLS, 2004, p. 82). Stonehouse corrobora as palavras de Nichols ao afirmar que a aceitação de Macmillan se deu porque foi “influenciada pela atenção que tinha sido atraída para Fosdick, a grande controvérsia, e a força do movimento de reafirmação dos fundamentos” (HART, 1995, 341).

Fosdick “foi um dos clérigos mais influentes da primeira metade do século XX” (LINDER em ELWELL, 1991, v.2, p. 183) bem como um dos maiores “popularizadores do liberalismo teológico moderno” (LINDER, 1991, p. 183). Por seu empenho em defesa do Liberalismo, foi denominado pelos conservadores de “Moisés do modernismo” e “Jesse James do mundo teológico”.

A influência de Fosdick e sua pregação explícita contra o fundamentalismo explicam a aceleração da publicação de Cristianismo e Liberalismo. Era preciso uma resposta rápida e à altura. E Macmillan encontrou um excelente representante do lado conservador da controvérsia. A editora recebeu o livro no início de dezembro de 1922 e dois meses depois foi publicado. Segundo Stonehouse, “durante do resto do ano um pouco menos que mil cópias foram vendidas, mas em 1924, quando o livro tornou-se popular e a controvérsia [fundamentalismo-modernismo] tornou-se mais intensa, a venda total aproximou-se das cinco mil cópias” (STONEHOUSE, 1954, p. 341).

O sucesso de vendas não é a única amostra de sua importância e/ou proeminência em relação às suas outras obras. Foram várias as recomendações feitas por especialista. Mas ficaremos com a mais simbólica; as palavras de comentarista secular Walter Lippmann:

É um livro admirável. Por sua perspicácia, por sua importância, e por seu tino, esta fria e rigorosa defesa do protestantismo ortodoxo é, penso, o melhor argumento popular produzido pelo outro lado da controvérsia. Faremos bem ouvir o Dr. Machen. Os liberais ainda têm que respondê-lo (NICHOLS, 2004, p. 82).
3.2 O Conteúdo Holístico.

Como o próprio título revela, a obra lida com uma situação histórica específica: A distinção entre Liberalismo (modernismo) e Cristianismo torna o primeiro uma ameaça a ser condenada, justificando-se, pois, uma luta aberta contra o mesmo.

Machen lida, pois, com condições peculiares dos seus dias; como por exemplo, a aceitação de liberais em instituições cristãs; a desonestidade desses na manutenção de expressões ortodoxas, porém, redefinidas, bem como no uso dos recursos de instituições confessionais. O uso constante da expressão “situação presente”, “presente controvérsia”, “no presente”, “o presente”, “medidas necessárias hoje” (MACHEN, 2001, p. 163, 166, 169, 170, 172) reforça sua preocupação com uma situação histórica particular. Em alguns casos, Machen usa o termo “igreja” pressupondo tratar-se da “Igreja Presbiteriana”. Alguns dos conselhos do último capítulo só poderiam ser aplicados ao governo de igreja por ele defendido (presbiteriano), revelando assim, a aplicabilidade restrita da obra.

Apesar de sua natureza particular, em Cristianismo e Liberalismo Machen não nos proporciona somente um manual peculiar aos presbiterianos contra o Liberalismo Teológico do início do século XX, tornando-se uma obra “presa” a um contexto histórico particular. Antes, por tratar com os elementos essenciais do cristianismo, ou seja, as doutrinas inegociáveis que fazem do cristianismo, cristianismo, Machen, legou à Igreja as colunas doutrinárias do cristianismo.

Cristianismo e Liberalismo não somente nos ajuda a entender a como lidar com o Liberalismo; ele nos apresenta o que realmente é o cristianismo. Embora a obra tenha um caráter apologético, é uma obra mais positiva que negativa, por que enquanto combate o Liberalismo (natureza negativa), Machen nos ensina o que é Cristianismo (natureza positiva). “A resposta de Machen vai além da sua situação contemporânea e fala de questões de importância atemporal” (MACHEN, 2001, p. 83).

O caráter holístico da obra também é revelado em sua metodologia. Machen analisa o sistema a partir de seus fundamentos e/ou pressupostos. Sua crítica capital ao Liberalismo é que ele “[…] procede de uma raiz completamente diferente”, ou “bases da fé” (MACHEN, 2001, p. 172) opostas. Aqui Machen nos alerta para o fato de que é exatamente nos fundamentos que se trava a verdadeira batalha pela fé. Toda teologia é construída a partir de pressuposto e/ou fundamentos; e é ai que as batalhas devem ser travadas.

A declaração que segue revela a consciência de Machen do caráter atemporal de sua defesa do cristianismo: “a investigação com a qual estamos agora preocupados é sem dúvida a mais importante de todas aquelas com as quais a igreja deve lidar” (MACHEN, 2001, p. 19).

Por sua natureza holística, Cristianismo e Liberalismo ajuda-nos a julgar e/ou entender assuntos outros como espiritualidade, exclusivismo, ecumenismo, milagres, crítica bíblica, apologética, linguagem religiosa, amor, justiça, salvação, pragmatismo, a natureza da fé etc. Sua metodologia de abordagem ao Liberalismo pode ser usada para avaliação de qualquer fenômeno religioso. Ela pode ser usada contra o subjetivismo do misticismo bem como a secura anti-sobrenatural do cristicismo histórico que negava os eventos mais importantes do cristianismo (morte e ressurreição de Cristo). Sem dúvidas, uma obra para todos os tempos.

4. CRISTIANISMO E HISTÓRIA.

O tema “história” é uma constante na vida e obra de J. Gresham Machen. Ele aparece cedo nos escritos do teólogo de Pricenton. Permeia toda sua monografia de graduação sobre o nascimento virginal de Cristo e é tônica do seu sermão de ordenação cujo título era História e Fé: Um Evangelho despido da história é simplesmente uma contradição de termos (MACHEN, 2001, p.i.). A temática é reiterada várias vezes ao longo de sua produção literária.

4.1 O Liberalismo e a História.

Sua preocupação com a história tinha uma explicação: A separação entre cristianismo e história era, para Machen, o grande interesse da teologia moderna (MACHEN, 1951, p. 170). Em suas palavras:

Em uma época como esta, é óbvio que cada herança do passado deve ser objeto de uma crítica aguda; […] a dependência de qualquer instituição do passado é agora, às vezes, até mesmo considerada como fornecedora de uma presunção não em função da mesma, mas contra. […] Se tal atitude for justificável, então nenhuma instituição é encarada com uma presunção hostil mais forte do que a instituição da religião cristã, visto que nenhuma outra instituição tem se baseado com mais honestidade na autoridade de uma era passada do que ela (MACHEN, 2001, p. 15).

Ele entendeu como poucos que quando o assunto é teologia moderna, uma das questões cruciais era o lugar da história no Evangelho cristão (HART, 1995, p. 344). Para Machen “O cristianismo […] é dependente da história” (MACHEN, 2001, p. 122). E ainda: “um evangelho independente da história é uma contradição de termos” (MACHEN, 2001, p. 122). Para ele:

O estudante do Novo Testamento deve ser primariamente um historiador. O centro e o cerne de toda a Bíblia é história. Tudo que está na Bíblia está ligado a um arcabouço histórico e nos conduz a um clímax histórico. A Bíblia é primariamente um livro histórico (MACHEN, 1951, p. 170).

A hermenêutica moderna foi alvo das críticas de Machen, pois não permitia se lê um evento sobrenatural como histórico. Machen detecta esse pressuposto ao afirmar que “a raiz do movimento [liberal] é uma; as variedades da religião liberal moderna são arraigadas no naturalismo – isto é, na negação de qualquer entrada do poder criativo de Deus” (MACHEN, 2001, p. 14). De encontro ao naturalismo Machen assegura que:

O Jesus apresentado no Novo Testamento foi claramente uma Pessoa histórica – isto é admitido por todos os que têm se confrontado com os problema [sic] históricos. Mas, o Jesus apresentado no Novo Testamento foi claramente uma Pessoa sobrenatural. Porém, para o liberalismo moderno, uma pessoa sobrenatural nunca é histórica (MACHEN, 2001, p. 108).

De Ritschl e Kant o Liberalismo herdou a idéia de que a mensagem religiosa se reduz à ética. Essa redução do cristianismo tinha uma relação direta com a desvalorização de sua historicidade. Vindo em uma corrente oposta, Machen afirma que a ética cristã (imperativo) está atrelada e/ou é decorrente do indicativo histórico da morte e ressurreição de Cristo. Em suas próprias palavras:

O pregador liberal está realmente rejeitando toda a base do Cristianismo, que não é uma religião edificada sobre aspirações, mas em fatos. Aqui se encontra a diferença fundamental entre o liberalismo e o Cristianismo – o liberalismo está, no geral, no modo imperativo, enquanto o cristianismo começa com um indicativo triunfante […] (MACHEN, 2001, p. 53).

Ainda pensando na relação entre ética e cristianismo, Machen argumenta que há fatos que se impõem em nossa vida. São eles: sofrimento, morte, culpa e pecado. A esses fatos, afirma Machen, “o pregador moderno responde – com exortação” (MACHEN, 1951, p. 171). A essa postura Machen contrapõe:

Muito eloqüente, meu amigo! Mas que pena! Você não pode mudar os fatos. O pregador moderno oferece reflexão. A Bíblia oferece mais. A Bíblia oferece notícias – não reflexão sobre o antigo, mas notícias de algo novo; não algo que pode ser deduzido ou descoberto, mas algo que aconteceu; não filosofia, mas história; não exortação, mas o Evangelho (MACHEN, 1951, p. 171).

No primeiro capítulo de sua magnum opus, Machen argumenta que a essência do cristianismo é doutrina. Uma clara rejeição do conceito sentimental e/ou experimental de religião defendido pelos liberais e herdado de Schleiermacher. Sobre a relação história e doutrina Machen afirma:

Desde o início, o evangelho cristão, como de fato o nome “evangelho” ou “boas novas” infere, consistia de relato de algo que havia acontecido. […] “Cristo Morreu” – isto é história; ‘Cristo morreu pelos nossos pecados – isto é doutrina. Sem estes dois elementos, conjugados em união absolutamente indissolúvel, não há Cristianismo.” (MACHEN, 1951, p. 35)

E mais:

O mundo deveria ser redimido através da proclamação de um evento. E com o evento estava o seu significado; e a apresentação do evento com seu significado é doutrina. Estes dois elementos estão sempre combinados na mensagem cristã. A narração dos fatos é história; a narração dos fatos com significado dos mesmos é doutrina (MACHEN, 1951, p 37).
Em suma, para Machen, no cristianismo, o sobrenatural, a ética, a doutrina e a história estão essencialmente conectadas. Nas palavras de Machen, trata-se de uma “união indissolúvel”. O abandono da história pode até manter a crença “filosófica” em Deus com seus corolários éticos. Porém, afirma Machen, o abandono da história, “nunca pode preservar o Evangelho, pois ‘evangelho’ significa ‘boas novas’” (MACHEN, 2004, p. 98).

4.2 A Neo-ortodoxia e a História.

No dia 2 dezembro de 1929, A Savage of Scribner´s Publishing House enviou para Machen uma cópia da obra de Emil Brunner intitulada The Theology of Crisis. O objetivo da editora era uma recomendação e/ou conselho de um representante da ala conservadora (HART, 1991, p. 189). A resposta de Machen a Scribner “tornou-se sua resposta típica quando o assunto era neo-ortodoxia; disse que não entendia a teologia da crise como um retorno ao cristianismo evangélico, mas seu conhecimento limitado o impedia de um julgamento final” (HART, 1991, p. 189).

Um ano antes, em um artigo escrito em 23 de abril para um pequeno grupo de ministros, Machen demonstra muito cuidado em tomar uma posição para o movimento que estava surgindo – a teologia da crise. Em várias partes do documento Machen revela suas limitações. Ele diz que tem “poucas palavras” (MACHEN, 1991, p. 197) e que tem dificuldade de “explicar o que não entende” (MACHEN, 1991, p. 200).

Para Machen, em alguns assuntos como: o homem perdido no pecado e a graça de Deus como um dom de Jesus Cristo seu filho, a teologia da crise “soa como John Bunyan, João Calvino, o Catecismo Menor e a Fé Reformada” (MACHEN, 1991, p. 200). No entanto, apesar de todo cuidado para com assuntos não completamente compreendidos, Machen é firme em declarar que:

Eles [Barth, Brunner e seus associados] diferem, eu penso (se pudermos ignorar detalhes e irmos imediatamente ao centro das coisas) – eles diferem na sua epistemologia, diferem em sua atitude para com simples informação histórica que a Bíblia contém (MACHEN, 1991, p. 201).

Para Machen, Barth “tenta fazer a fé cristã independente das descobertas da história científica quanto a vida de Cristo” (MACHEN, 1991, p. 203). E ainda, “A atitude de Barth e seus associados no tocante ao criticismo histórico constitui uma fraqueza mortal da escola” (MACHEN, 1991, p. 204).

A despeito de sua reconhecida limitação julgamento, o grande incômodo para Machen está na estranha indiferença de Barth a questões de criticismo literário e histórico no tocante a Jesus Cristo. Essa indiferença era tamanha que até mesmo Bultmanm, com seu ceticismo extremo na esfera histórica, pode aparentemente ser considerado um membro da escola barthiana uma vez que era um dos contribuidores do jornal Zwischen den Zeiten (MACHEN, 1991, p. 204).

“A reação inicial de Machen ao barthianismo sugere que ele considerou a neortodoxia, em suas variações tanto na América quanto na Europa, como uma extensão do Liberalismo protestante ao invés de um repúdio” (HART, 1991, p. 193). Ambas as escolas tinham problemas quanto à historicidade do cristianismo. Na primeira, a negação do sobrenatural não permitia uma “leitura completa” do registro dos Evangelhos fragmentando-os na busca do Jesus histórico. Na segunda, as doutrinas basilares como Trindade, fé, pecado e redenção em Jesus eram fruto de uma leitura descompromissada e indiferente da história. Na primeira, o Evangelho era julgado pela crítica história naturalista; na segunda, a história era desvalorizada pelo subjetivismo decorrente do seu conceito deturpado de revelação. Ambas eram ameaças ao verdadeiro cristianismo, pois tinham negligenciado um elemento essencial – sua historicidade.

5 O CRITICISMO HISTÓRICO.

Segundo Eta Linnemann, “Para a teologia histórico-crítica, a razão crítica decide o que é e o que não pode ser realidade na bíblia; e essa decisão é feita na base da experiência diária acessível a cada pessoa” (LINNEMANN, 2009, 101-102). Em outras palavras, “Aquilo que é espiritual é julgado segundo critérios da carne” (LINNEMANN, 2009, p. 102). Certamente partindo desse pressuposto, nunca chegaremos a conclusões de cunho sobrenatural. Pois, como bem colocou Augustus Nicodemus: “É sabido e reconhecido, nas mais diversas áreas do conhecimento, que a escolha de um método já determina, por antecipação, a extensão e o tipo de resultados da pesquisa” (LOPES, 2005, p. 136).

A despeito de seus pressupostos e métodos, para Machen “Não podemos, […], ser indiferentes ao criticismo bíblico” (MACHEN, 1951, p. 183-184). Ele entendia que a rejeição do caráter histórico das Escrituras era uma ameaça a igreja uma vez que a Escritura é o fundamento desta. “Machen não apenas censura as críticas liberais, mas também o que ele considerou a piedade convencional e descuidada do protestantismo” (HART, 1995, p. 37). Apelar para o sobrenatural não era o único caminho. Nas palavras de Hart:

Embora [Machen] cresse que a origem do cristianismo era sobrenatural e que a visão de Paulo é mais bem entendida com uma reflexão dessa realidade, Machen não se satisfazia com a história providencial para explicar a origem do movimento cristão (HART, 1995, p. 50).

“Ao invés de evitar os métodos e achados da alta crítica, como muitos conservadores fizeram, Machen usou a nova erudição tanto para defender o Cristianismo histórico quanto para atacar a complacência do protestantismo corrente” (HART, 1995, p. 50).

Para Hart, a postura de Machen tem explicação na sua formação em Princeton. “Tão incongruente quanto parece, a doutrina da inerrância bíblica do Seminário de Princeton instigou seus estudiosos a intensificar o estudo crítico ao invés de fugir dele” (HART, 1995, p. 42). Hart esclarece:

[…] teólogos de Princeton usavam métodos críticos para argumentar que inspiração e erudição avançada eram compatíveis. […] Ao invés de impor limites, essa doutrina [inspiração] permitiu os estudiosos de Princeton explorar completamente os aspectos humanos da formação e recepção da Bíblia (HART, 1995, p. 43).

Aqui se faz necessário uma palavra sobre o estudo da história no início do século XX. Uma nova concepção da pesquisa histórica estava surgindo – era a Nova História. Enquanto Machen “assumiu uma visão atemporal e estática do passado que objetivava encontrar o propósito original do autor” (HART, 1995, p. 55), os da nova escola estavam preocupados com os elementos sociais e culturais que explicavam os eventos históricos. Para essa escola, cristianismo não era definido pelos ensinos de Paulo e dos apóstolos; antes, como tudo nessa escola, Cristianismo era um fenômeno social. Muito da obra The Origin of Paul´s Religion de Machen foi investido para revelar “as explicações impróprias do naturalismo que atribuiu a crença de Paulo ao condicionamento do desenvolvimento histórico e cultural” (HART, 1995, p. 51).

Essa diferença entre escolas fica clara quando observamos as variações nos julgamentos feitos em resenhas e/ou comentários sobre The Origin of Paul´s Religion. Elas iam de elogios rasgados como os feitos por Benjamin W. Bacon até as críticas feitas por James Moffatt (HART, 1995, p. 53-4). Parte das críticas bem como dos elogios se davam pela concepção de história, e, por conseguinte, da metodologia empregada.

Machen reconhecia a intensa relação entre método e pressuposto. Ele era consciente de que não existia um “criticismo científico puramente neutro” (MACHEN, 2004, p. 519. Além disso, Machen tinha ciência de que muitas das pressuposições do criticismo eram naturalistas e por isso “uma pessoa sobrenatural, de acordo com os historiadores modernos, nunca existiu” (MACHEN, 1951, p. 175). Para ele, a negação do nascimento virginal, por exemplo, se dava por “pressuposições filosóficas ao invés da tradição histórica” (HART, 1995, p. 41).

Ele critica o pressuposto naturalista que nega o sobrenatural quanto lida com a tentativa liberal de separação o natural do sobrenatural no relato bíblico. Para ele “o processo de separação nunca foi realizado com sucesso.” (MACHEN, 2001, p. 108), pois revela inconsistência entre os pressupostos e as conclusões. Ele nos alista três razões para o fracasso de uma “leitura seccionada” dos Evangelhos:

Em primeiro lugar, existe a dificuldade inicial de separar a narrativa natural da narrativa sobrenatural nos Evangelhos. As duas são inextrincavelmente interligados. […] Em segundo lugar, suponhamos que a primeira tarefa tenha sido realizada. É realmente impossível, mas suponhamos que tenha sido realizada. Você tem o Jesus histórico – um mestre da justiça, um profeta inspirado, um adorador puro de Deus. […] Mas tudo em vão! […] Há uma contradição bem no centro do Seu ser. Essa contradição surge de sua consciência messiânica. (MACHEN, 1951, p. 176-7).

Aqui temos um grande problema, afirma Machen. Para os mesmo liberais que afirmam, por meio da crítica histórica, que Jesus tinha uma consciência messiânica, “um humilde mestre que pensa ser o juiz da terra […] seria um insano” (MACHEN, 1951, p. 176-7).

“Em terceiro lugar, o Jesus liberal é insuficiente para explicar a origem da Igreja Cristã. O poderoso edifício da cristandade não foi construído em um pin-point” (MACHEN, 1951, p. 176-7). E, nas palavras de Machen, “história odeia um vácuo” (MACHEN, 1951, p. 181-2). Para Machen, “A Igreja Cristã […] é fundamentada na ressurreição de Cristo dos mortos. Se a ressurreição é negada, então a origem da Igreja torna-se um problema insolúvel” (MACHEN, 1997, p. 58). “A igreja não foi fundada na memória de um mestre morto, mas na presença de um Senhor vivo. A mensagem, ‘Ele ressuscitou’ – é o coração do Evangelho” (MACHEN, 1997, p. 59). Com essas três considerações, Machen revela a contradição entre as conclusões dos liberais com seus pressupostos anti-sobrenaturais.

Em suma, Machen tinha o estudo da história como essencial para o estudante das Escrituras. Por ser um livro histórico, a Bíblia faz daqueles que a desejam entendê-la verdadeiros historiadores. O historiador, por sua vez, deve ser coerente com os dados extraídos da pesquisa histórica séria, providenciando assim explicações lógicas para os eventos históricos uma vez que “história odeia um vácuo”. Além disso, deve ser cuidadoso visto que não existe neutralidade na pesquisa histórica. Sem esquecer-se, claro, de não ignorar as pesquisas da crítica histórica.

6 CONCLUSÃO

Temos muito a aprender com o zelo de Machen para com a historicidade do cristianismo. São muitas as implicações extraídas das colocações feitas pelo teólogo de Princeton. Aqui queremos alistar cinco:

Em primeiro lugar, intelectualidade não é antagônica à espiritualidade. Não podemos apelar à providência sempre estivermos diante das acusações feitas por estudiosos ignorando os fatos que se impõe; nem muito menos supersticiosamente ignorar os dados do estudo crítico. Em contraponto, ao mesmo tempo em que nos desafia ao estudo profundo, Machen reconhece que toda análise é direcionada por pressupostos.

Em segundo lugar, o assentimento da historicidade dos eventos bíblicos nos desperta para a tarefa missionária. Por possuir uma mensagem histórica e não “existencial atemporal”, o cristão não pode esperar que o homem encontre dentro de si mesmo o diagnóstico e a resposta para seus problemas. Ele precisa ouvir a notícia da morte expiatória e ressurreição corpórea de Cristo para responder com fé. “A fé vem pela pregação” (Rm. 10.17).

Em terceiro lugar, Machen desafia a igreja a extrair das boas notícias tanto sua doutrina quanto sua ética. A ênfase em ética ou em bons conselhos desvinculada dos eventos chaves do cristianismo nivela a igreja cristã a outras religiões. “É a conexão da experiência presente do crente com a aparição histórica real de Jesus no mundo que previne nossa religião de ser misticismo e faz com que seja cristianismo” (MACHEN, 2001, p.122).

Em quarto lugar, Machen nos ajuda com a tarefa apologética. A fé é uma resposta a um evento histórico (Rm. 10.17), portanto, não pode nascer de dentro de nós mesmo via argumentação. Nenhuma manobra filosófica pode levar pessoas à fé cristã visto que fé é uma resposta (reação) ao anúncio de um evento histórico. Em suas palavras: “não algo [é] que pode ser deduzido ou descoberto […] não filosofia, mas história” (MACHEN, 1951, p. 171).

Por último, Machen desafia aqueles que hoje se denominam “fundamentalistas” a lutar pelos elementos fundamentais da fé como aqueles da primeira fase. Quando estudamos a história de Machen, ficamos tristes em constatar que os “princípios elementares” dos primeiros fundamentalistas tornaram-se “pormenores fundamentais”. A luta dos primeiros fundamentalistas era pela inerrância das Escrituras, a historicidade dos eventos bíblicos etc. Hoje, ser fundamentalista é lutar por ou contra instrumentos musicais, versões, dispensacionalismo e questões específicas envolvendo a liberdade de consciência. Essa, com certeza, não foi a luta de Machen; certamente não é a minha, e espero que não seja a sua.

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Ordenação e Congregacionalismo

Esse ano vou fazer seis anos que pastoreio a 1ª Igreja Batista Regular de Aquiraz (Ceará). Nesse período de pastorado nasceu uma congregação. Essa, por sua vez, tem prosperado muito. Não demorou a enviarmos um irmão da “igreja mãe” para auxiliar o missionário que havia iniciado o trabalho. Era nossa forma de apoiar a obra. Esse irmão, que sempre foi ativo em nossa igreja, assumiu pregações, estudos, aconselhamentos, visitações etc. Em outras palavras, assumiu “atividades pastorais”. Logo, os membros da congregação o denominaram “pastor”. Nada mais natural e esperado. Porém, isso não me agradava, pois, apesar de entender que todos os cristãos possuem dons, e que o do irmão em questão era o pastorado, alguns dons precisam de reconhecimento oficial. E certamente esse seria o caso do pastor (cf. At. 14.23).

Foi então que o tema ordenação me veio à mente. Eu não havia passado por aquilo que muitos em meu grupo chamam de ordenação. A primeira questão a surgir foi: “Como vou ordenar o pastor da congregação, se eu, o pastor da igreja mãe, não sou ordenado?”. Outras questões surgiram: “Seria eu um pastor de segunda categoria?”; “Existem pastores de duas categorias – os ordenados e os não?”; “Existe algum pastor não ordenado?” O artigo que segue visa responder essas questões.

Comecemos com a definição. Quero apresentar duas. A primeira é a essência do que encontramos nos compêndios de teologia, enquanto a segunda é resultado da minha observação da prática.

Definição 1: Ato solene pelo qual a igreja local reconhece pública e formalmente o seu pastor como uma pessoa chamada e apta para desempenhar as funções ministeriais (Jaime Augusto Lima – itálico nosso).

Agora vamos à definição partindo da prática Batista. Antes de criar a definição que segue, procurei a opinião de vários amigos de ministério.

Definição 2: Ordenação é uma cerimônia em que um candidato ao pastorado, embora paradoxalmente possa já ter sido reconhecido por sua igreja local como pastor, é examinado doutrinariamente em algumas horas e recebe a chancela ou a reprovação de vários pastores e/ou membros de um concílio que não necessariamente fazem parte da igreja local. Denominaremos esse conceito de ordenação, “Ordenação Conciliar” (doravante, OC).

Nesse ponto quero alistar e/ou relembrar duas marcas do sistema de governo congregacional que têm ligação direta com a questão da OC e serão essenciais para nosso julgamento da mesma. O congregacionalismo, portanto, em nosso artigo não é julgado; antes, pressuposto.

A autoridade final está com a igreja local (cf. Mateus. 18; 1 Coríntios. 5).

Toda interferência externa à igreja local não se dá de forma autoritativa e/ou final; antes, possui caráter de sugestão, aconselhamento, elucidação, informação, exortação etc. A última palavra sempre será da igreja. Aqui vale a ressalva de que a mesma pode errar caso não se enquadre na autoridade maior – a Revelação Escrita. Em outras palavras, a autoridade da igreja é derivada das Escrituras. Aqui estamos pensando na relação de autoridade pastor/igreja.
Se todo conselho, seminário, associação ou qualquer instituição tem poder somente de sugestão, a natureza validade de um documento de OC dependerá, por sua vez, da igreja local. Ou seja, em si, ela (OC) não tem valor final. Trata-se de uma sugestão.
A questão aqui é: Porque a ordenação, na maioria das vezes (conforme observei em pesquisa realizada com vários pastores), acontece depois do reconhecimento já realizado pela igreja? Porque ordenar alguém já reconhecido pela igreja? Não seria um testemunho da igreja contra ela mesma, já que ela está pedindo um conselho sobre aceitação (ou não) de um pastor já aceito por ela? E aceitação por parte de um grupo de pastores não seria um testemunho contra eles mesmos uma vez que não estão reconhecendo a autoridade final da igreja local? Ora, se após um reconhecimento oficial por parte da igreja local se faz necessário outro reconhecimento, certamente um sobrepuja o outro. Se autoridade do concílio é secundária e não final, porque acontece depois?
Alguém pode retrucar dizendo que a igreja pode errar em suas escolhas, por isso precisa dos “de fora”. Não tenha dúvidas não é preciso ter muita experiência em igreja para se concluir que ela pode errar; mas questão é: onde estará o erro e como consertá-lo? O que o concílio analisa que a igreja não pode discernir? Se um grupo de fora vê o que a igreja ainda não viu, tal realidade pode, no máximo, denunciar uma metodologia ruim da igreja local no reconhecimento do seu pastor e não implica necessariamente em uma apologia da OC.
Talvez você está pensando que nem toda OC segue a aceitação da igreja. É verdade. Em consulta a colegas de ministério, alguns têm dito que o ideal é que a ordenação venha antes do reconhecimento da igreja. No caso, a igreja deveria reconhecer (ou não) levando em conta o conselho do concílio. Concordo que essa deveria ser a ordem; contudo, discordo quanto ao fato de ser a práxi (pelo menos no meu grupo). Mas, passemos, então, mesmo que por ficção, a considerar que todas as OC precedem a aprovação da igreja.
Aqui vamos a segunda marca do governo congregacional:

A autoridade (jurisdição) pastoral é restrita a sua congregação.

O governo congregacional assegura que cabe a igreja local o reconhecimento dos seus pastores. Em outras palavras, ninguém pode se autodenominar “pastor”. Pastor é uma vocação que exige reconhecimento oficial da igreja. Nenhum pastor pode surgir no “vácuo eclesiológico”. Não há pastor sem igreja. Sua autoridade é derivada da igreja.
No processo desse reconhecimento ela pode pedir a ajuda de pastores e/ou irmãos de outras igrejas. Para mim, sem dúvidas, uma atitude louvável (Pv. 15.22). Porém, neste mundo decaído, tudo que é louvável e virtuoso não está tão distante do reprovável e pecaminoso. Poucos conseguem ver problemas com esse pedido de ajuda e/ou aconselhamento. Aqui queremos considerar os possíveis problemas implicados desse pedido.
1. A igreja local pode esquecer que a “autoridade pastoral” dos seus convidados está restrita às suas igrejas locais. Se a igreja que convoca um concílio não tiver consciência da jurisdição dos seus convidados, o que deveria ser uma ajuda de irmãos mais experimentados passa a ser a palavra final; e os “conselheiros” passam a ser considerados os “autorizadores”. A igreja, portanto, pode entregar às pessoas “de fora” (concílio) o seu trabalho devido. Nenhum grupo de pastores ou irmãos, por mais experimentados que sejam, pode assumir o lugar exclusivo da igreja local.
Coloquemos a questão em forma de pergunta: “Deveria a igreja local aceitar, ou usando as palavras do apóstolo Paulo em 1 Timóteo 5.22, “ser cúmplice” do julgamento do concílio como a “palavra final” não sujeita a questionamentos, críticas e até mesmo reprovação?” Para o NT, não. Todo conselho deve ser analisado como conselho. Ou seja, não é palavra final. Particularmente, penso que isso não acontece na prática.
2. Vejo no pedido de ajuda um problema no reconhecimento da suficiência da igreja local em cumprir suas prerrogativas. Se essa precisasse de uma interferência fora dela mesma, porque Deus não criou essa outra instituição? Além disso, as qualificações de um bispo não podem ser examinadas por pessoas que não convivem com a mesmo. Aniquilo, portanto, qualquer possibilidade de consulta da igreja a pastores e irmãos experimentados de outras igrejas? Não; não e não. Contudo, infelizmente, muitos dos consultados não reforçam a autonomia da igreja; antes, se colocam como elementos essenciais no processo de reconhecimento de um pastor – o que não é.
3. Aqui entramos em outro ponto: A OC pode servir para perpetuar um modelo capenga. Como já coloquei, no ideal do NT, pastores devem emergir da própria igreja e não “de fora” (cf. o post “A relação entre a igreja e o pastor”). E é exatamente porque a grande maioria dos pastores hoje vem “de fora” do convívio com a igreja, que a OC torna-se necessária. Traduzindo: como a igreja não conhece o candidato (e deveria conhecer para o reconhecer), ela realmente precisa do conselho dos de fora. Sua ignorância a conduz a supervalorizar o conselho do concílio.
4. A convocação de um concílio tem seus perigos e ameaças. Pensemos numa situação específica: uma igreja recusa o veredicto do concílio. Para mim, isso é o mesmo entrar numa grande enrascada junto à associação de igrejas ou a comunidade pastoral. Há, portanto, a possibilidade da OC ser um tiro no pé da igreja. Alguns diriam que a reprovação da igreja ao veredito do concílio não seria ético. A pergunta que poderia ser feita em contraposição é: não seria antiético, por parte do concílio, reprovar alguém já aceito pela igreja?

Minhas conclusões:

1. A OC não emerge do sistema de governo congregacional. A sensação que tenho é que a OC é uma síntese que os congregacionais fizeram com outros governos de igreja. O que os congregacionais devem entender, é que toda prática parte de pressupostos. E isso não é diferente com a OC. Os pressupostos do presbiterianismo, por exemplo, não somente permitem a OC como também a exige, pois nesse sistema, pastor é pastoreado por pastores (presbitério). A questão é: O congregacionalismo e suas duas bandeira citadas supra não exigem nem permite o peso “autoritativo” dado a OC. Os pressupostos que exigem um Concílio de pastores emergem de qualquer tipo de governo, menos do congregacional.

2. Reconheço a importância das relações entre as igrejas. Creio na autonomia da igreja, mas entendo que autonomia não é o mesmo que independência total. O NT deixa claro que as igrejas tinham projetos comuns (Rm. 15.26); preocupavam-se umas com as outras (At. 11.27-30; 12.25). Por outro lado, há casos em que as igrejas não deveriam intervir na vida de outras. Na disciplina, por exemplo. Uma igreja local não pode disciplinar o membro de outra igreja. Isso se dá pela própria natureza da questão. A disciplina deve ser realizada pela igreja. Não vejo como pessoas “estranhas” podem determinar se alguém é pastor ou não. A natureza das exigências para o reconhecimento de um pastor requer o respaldo da convivência que um concílio formado por pessoas de fora não pode dá. Isso não elimina a consulta de outros, mas limita o respaldo dos de fora.

3. Uma atitude louvável; melhor, esperada em um concílio é orientar a igreja no processo de convite de um pastor e não tomar seu lugar. Caso seja convidado para o reconhecimento de um pastor que já se encontra lá e já foi reconhecido (ordenado) pela igreja, o concílio deveria ajudar a igreja a entender o papel do pastor e da igreja bem como abraçar esse “noviço” na orientação de uma vida pastoral. Em outras palavras, os “de fora” devem ser instrumentos de auxílio dessa nova relação (pastor/igreja).

4. O que não se pode negar é que a OC tende a formar uma classe diferenciada dentro dos pastores. Isso pode ser observado na prática quando alguém após perguntar se você é pastor, logo em seguida, pergunta se é ordenado. Ou seja, tem o pastor e pastor ordenado. É como acontece com a formação dada pelos seminários. As pessoas perguntam: “você é pastor?” e logo em seguida: “formado aonde?”.

5. Passar por uma OC hoje, para mim, seria um retrocesso. Estaria comunicando a minha igreja, de forma indireta, que seu reconhecimento nesses últimos seis anos não tem peso para mim, nem para Deus. É como se estivesse buscando fora da igreja uma autoridade maior. Como se a dela não bastasse. O fato é que sou ordenado pela minha igreja. Logo, eu, e todos os que foram reconhecidos em suas igrejas, foram realmente ordenados. Fico a definição 1.

Eu era ordenado e não sabia.

Perfil

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Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.