Um Velho Solitário

Conheci um velho solitário. Sim, sei que “velho” é uma descrição assaz penosa – evitada, substituída por eufemismos e, hoje em dia, até proibida, mesmo que veladamente, de se pronunciar. Mesmo com um artigo prefaciando-a e substantivando-a, ela sempre trará forçosamente sua carga qualificativa e adjetival carregada e negativa. O qualificativo que a segue, por sua vez, – “solitário” – vem saturar o quadro com tintas ainda mais sombrias – porém, reais, conscientemente intencionais e escolhidas sem pressa.
Todos os dias, a caminho dos meus afazeres diários, já diante da casa de número 71, o aroma de tabaco queimado anunciava que certamente ele já estaria contemplado ou lamentando (não sei ao certo) a criação e o Criador. Como de costume, Seu Ermo, morador da casa 67, sentava numa surrada e encardida poltrona na área de sua casa (não gostava de cadeiras de balanço, pois lhes davam náuseas) antes que os primeiros raios da manhã vencessem as densas nuvens.
Meu primeiro contato com ele se deu com o convencional menear suave vertical, quase imperceptível, de cabeça. Ele na sua poltrona e eu caminhando na calçada (a casa de Seu Ermo não tinha muros). Tomei a iniciativa, no que fui pronta, amorosa e reverentemente respondido. Nunca esquecerei aquele olhar. Era um misto de firmeza, sobriedade, paz e mistério. Se a verdade fosse uma pessoa (quem disse que não é?), ficaria à vontade naquela área com ares sorumbáticos cheia de folhas secas – era sempre outono na casa de Seu Ermo.
Isso se deu no dia da minha mudança para a pequena cidade de A... Morávamos na mesma rua. Somente cinco casas nos separavam. Eu, minha esposa, meus três filhos passávamos pela rua a pé (prefiro caminhar) no que me deparei com uma cena que testemunharia ainda muitas vezes: Seu Ermo, sua poltrona, seu cachimbo e as incansáveis folhas secas ao vento em volta seus pés.
Nosso segundo “encontro” se deu na padaria do bairro. Ele não me viu. Postei-me cuidadosamente como observador visando não ser o observado. Vi-me parado – hipnotizado. Cena corriqueira: um velho comendo. Porém, nesse dia em especial, todas as nuances da velhice e da solidão ficaram em alto relevo aos meus olhos. A roupa de fibras gastas, amarrotadas, encardidas e fora de moda denunciavam o abandono. A lentidão e o esforço para trazer o alimento à boca, a mastigação incansável e quase ineficaz pulverizaram todo sinal de encanto pessoal. O alimento não parecia ser um agente de prazer, mas um inimigo a ser vencido. A indiferença dos que o cercavam e o seu olhar desfocado faziam daquela mesa um cenário à parte. Os calcanhares ressecados e rachados e as unhas dos pés quase ultrapassando os limites do que restava de uma sandália de couro realçavam a melancolia daquela visão.
            Aquele violento espetáculo me estagnou. Era só eu e o velho – nada mais. Fui arrancado dos turbilhões de pensamentos desconexos pelos gritos do padeiro:
– O que o senhor deseja? Senhor, por favor, o que deseja?
– Sim...é...claro...é...como?...claro...oito pães e um litro de leite, por favor – tentava me recompor.
– O senhor conhece aquele idoso? – perguntei despretensiosamente ao padeiro.
– Sim, claro, é o senhor Ermo.
– O que o senhor sabe sobre ele?
– O que sei é o que quase todo mundo aqui da cidade sabe, ou seja, não muito. Sabemos que vive só, que gosta muito de leitura, artes; como quase todo velho, toma muitos remédios, adora tapioca com café, fuma com classe, não tem dinheiro para seus lanches (por isso senta aí e espera a bondade dos outros) e, como ele mesmo diz, possui a sinceridade que só um velho solitário pode ter.
            As palavras “gosta de leitura e artes”, “sinceridade” e “fuma com classe” me arrebataram. “Blend poderoso. Preciso conhecê-lo” pensei comigo mesmo.
– Ele vem sempre aqui? – perguntei como quem joga conversa fora.
– Sim. Todo final de tarde ele senta e, como ele mesmo diz, espera que “os olhos do próximo estejam funcionando. Pois, olhos saudáveis sinalizam misericórdia à vista”.
            No outro dia me preparei para nosso “terceiro encontro”. Voltei à padaria e sentei próximo a mesa que ele havia ficado no dia anterior – queria ter uma visão melhor e talvez, quem sabe, iniciar um diálogo. Com as mesmas indumentárias, andar cadenciado, fraco, porém harmônico, o senhor Ermo entrou auxiliado por sua inseparável e elegante bengala.
Até agora não falei muito da aparência do meu protagonista. Do que já foi posto, o que posso acrescentar é que Seu Ermo aparentava ter oitenta anos (o que depois confirmei), era pardo, ostentava uma barba alva e longa (suficiente para cobrir seu longo pescoço – não mais que isso), cabelo curto no mesmo tom da barba, olhos castanhos claros. Não tinha todos os dentes, mas seu bigode exigia que somente um bom observador avistasse sua “banguelice”. Suas vestes, bem, não tenho certeza, mas deveria ter, no máximo, três conjuntos de roupa velhas, porém, sempre em harmonia e sinalizando certa elegância.
Sentou e, enquanto esperava “pelo olhar do outro”, dirigiu sua atenção a uma reportagem sobre a “melhor idade”. Meu ouvido ficou na reportagem e meus olhos em Seu Ermo. No fim, desligando o olhar da TV, Seu Ermo sorriu levemente num ar de reprovação e desprezo enquanto meneava a cabeça negativamente.
– E aí Seu Ermo, o que o senhor achou de tudo isso? – perguntou o padeiro.
– Ilusão. Recurso retórico pobre esse de trocar o nome das coisas para amenizar os efeitos da realidade. Ridículo. Na verdade, uma afronta a todos que se propõe a usar o menor irredutível de qualquer cérebro.
– E o que o senhor pensa sobre a velhice? – perguntei tímido.
Sem dirigir o olhar para mim, como se soubesse que se tratava da minha pessoa disse:
– Desejos suprimidos pelas constantes negativas do corpo; milhares de escolhas com resultados imutáveis, destruidores e inesquecíveis diante dos seus olhos todos os dias; amigos mortos; memória fraca; movimentos torturantes e cansativos; testemunha de olhares piedosos; testemunha da indiferença; testemunha do desprezo; possibilidades oníricas (ou seja, ilusória) que rondam e visitam suas mentes como demônios insones; gritos do corpo lembrando sua morte iminente; ausência de netos como testemunha constante do fracasso da paternidade; vontade sem força; falta de vontade e falta de força.
            Pausou para respirar e pensar. Continuou:
– Não tem todas as tintas, mas essas nuanças podem te dar um vislumbre opaco da realidade de quem pensa mais nos erros e na morte do que na vida e nos acertos. Coisa de um velho solitário.
Seu Ermo falava tudo isso como se estivesse falando com alguém; porém apenas uma tela enorme tomava toda sua visão. Pintado em tinta acrílica, a tela tinha cerca um metro de largura por três de altura. Tomava a parede inteira na altura. Uma longa estrada principiava na parte mais baixa da figura até o meio do quadro. Começava com paralelepípedos ladeados por uma viçosa grama verde, árvores com flores azuis, pássaros amarelos, flores vermelhas e criança correndo. A estrada afilava à medida que e se distanciava. Sua cor e suas laterais transmutavam perdendo as nuances coloridas partindo para um cinza com pequenos pontos luminosos até chegar ao completo breu. No meio do quadro, no final visível da estrada, a imagem espectral de um homem de costas com a sombra do dobro do seu tamanho projetada à frente caminhando para a escuridão que dominava metade do quadro para cima.
– Mais direto impossível! – tentei continuar a conversa.
Silêncio. O café chegou sem a desejada tapioca. Seu Ermo tomou e saiu. Já na calçada voltou-se para o quadro e disse:
– Acho que ao invés de um homem só, uma fila indiana representaria melhor o que o autor intencionou. A fila dos solitários. Tarde demais, o quadro já foi entregue.
            Olhei para o quadro e vi a assinatura com o nome do meu personagem.
Nosso quarto encontro foi acidental. Enquanto brincava na rua, meu filho lançou a bola no quintal de Seu Ermo. Como todas as crianças da rua, ele não teve coragem sequer de olhar para o velho misterioso, muito menos de lhe dirigir a palavra. Contudo, eu agora tinha uma desculpa para ir até lá e, quem sabe, trocar algumas ideias. Era domingo – tinha tempo.
– Bom dia! – Principiei o diálogo da calçada.
Seu Ermo só meneou a cabeça positiva e levemente. O que só dificultava o cumprimento do meu desejo.
– Meu filho...
– Sim, sei. A bola do seus filho, não é? Fique à vontade! – interrompeu Seu Ermo.
            Fiquei andando no quintal fingindo procurar a bola que já sabia onde estava. Queria ganhar tempo. Como não tinha o que dizer, usei da convenção:
– Desculpe, mas qual o nome do Senhor?
– Pergunte algo que realmente não sabe. – Seu Ermo arrumava seu cachimbo aonde dirigia também o olhar cuidadoso.
– Desculpe, só queria conversar e...
– Então, converse. – interrompeu novamente.
– Bem, não sei por onde começar. – procurava um lugar para sentar, porém, sem sucesso.
– Deixe eu adiantar. Bem, fiquei aqui pensando: “O que um velho solitário como eu tem que chama atenção de um pai de família novo e bem-sucedido como o senhor? Pensei e concluí: minha solidão o encantou. Claro, um velho desconhecido também carrega muitos mistérios – o que não deixa de ser encantador. Mas, voltando ao ponto, foi o desejo e o apreço pela solidão que o trouxe aqui.
            Fiquei estático. Ele continuou:
– Alguns casamentos acabam porque a tentação do adultério vence. Ou seja, um outro se intromete entre os dois. Trai minha esposa, sim, porém, com a solidão. As tentações dessa dama da noite sempre foram as mais fortes, pois nela tinha o que evitava em todas as minhas relações – a sinceridade. Depois da separação a velhice veio e deu mais vazão à sinceridade. Quando você não tem o que perder ou ganhar, as palavras saem com mais facilidade.
– Conheço bem essa dama. Tentadora realmente. Falei em um tom baixo e pensativo. Silenciei, pois queria mais ouvir do que falar.
Seu Ermo prosseguiu:
– Reconheço que a prudência é uma virtude. Sim, precisamos poupar os outros da podridão do nosso coração. Contudo, para mim, foi quase uma questão de sanidade. Via-me às vezes em três versões. A sinceridade queria cada vez mais espaço. O mundo da superfície era diferente demais do mundo subterrâneo. Não consegui suportar. O submundo emergiu com força. A prudência morreu. A sinceridade a matou e gerou a solidão.
Enquanto as folhas dançavam entre os pés rachados e encardidos, vi o olhar de Seu Ermo marejar até transbordar em um choro suave. Não sei quanto tempo o silêncio prevaleceu, mas a comunicação não se dissipou um só momento – trocávamos olhares marejados.
Seu Ermo quebrou o silêncio:
– Sozinhos ou acompanhados choraremos. Sempre. A diferença é que sozinho choramos pelo que somos. Nós somos os responsáveis. Com os outros, bem, se fizermos nada para chorar, os outros farão.
– Valeu à pena chorar só? – interrompi curioso, mas reverente – quase sussurrando.
– A solidão é para os que fogem do outro. Quis dar espaço à sinceridade, contudo, na verdade, estava fugindo da sinceridade do outro. Sinceridade sem humildade é uma mistura terrível. Em suma: fugi dos outros. Fugi dos olhares reprovativos, das críticas, das injustiças, dos erros próximos, do sofrimento do outro. Estava sempre ocupado comigo. Não tinha como se dividir com outros. Trabalho? Sim.
– Filhos? Perguntei automaticamente, mas ainda em tom baixo.
–Não. Filhos são outros. Nessa última frase a voz ficou muito embargada, mas continuou:
– Antes de ser um velho solitário, nobre amigo, eu fui um jovem egoísta. Fugi dos outros e, para minha surpresa, me encontrei. Encontrei-me. Lá estava eu sozinho comigo mesmo. Encontro aterrorizante. Pior, vi em mim a podridão que não podia ver nos outros. Porém, não pude fugir de mim mesmo. O último estágio foi querer ficar só. Ficar sem mim mesmo. Porém, minha interpretação de mim mesmo era equivocada, pois fugi de mim mesmo quando fugi do outro. Sem o outro não estou completo. Pena que descobri isso tarde demais.
– Desculpe a indelicadeza – interrompi – mas, como não temos mais previdência, como o senhor vive?
– Adivinha o que os idosos construtores de famílias mononucleares ou sem filhos encontram no final da fila da vida? Trabalho. Só trabalho. Nenhum auxílio. Ora, nada mais natural. Previdência nada mais é do que filhos ajudando e honrando seus pais e avós. Uma geração ajudando a outra. E quando não se tem tempo para ter e criar filhos? Trabalho sem fim. Solidão sem fim. Geração sem filhos; geração solitária.
Baforou o velho cachimbo. Um tipo de sinal para que eu pudesse entrar na conversa. Como não falei nada, retomou a palavra:
– Meu querido, já observou que minha casa é a única sem muros nessa rua?
– Sim, percebi.
– Posso te garantir, por trás desses muros enormes encontrarás toda uma geração sentada em poltronas imaginando como seria os rostos dos seus filhos e netos. Guarde isso meu jovem: a solidão é filha do egoísmo.
Seu Ermo apertou meu ombro com força olhou amorosamente e disse:
– Pior, a solidão nunca está só. Seus parceiros logo se apresentaram. Ah, e como são muitos e variados em qualidade! Depressão, medo, saudade com remorso, desânimo, silêncio, amputação...
Interrompi:
– E o olhar de paz que sempre vejo nos olhos do senhor?
            Seu Ermo apreciou mais do seu cachimbo.
– Ora, meu caro, muitas vezes vemos o que conhecemos e/ou desejamos. Você via na solidão a solução. Quando me viu, viu o que esperava. Pode ter visto paz, porém sua ligação com a solidão fala mais de suas expectativas do que da realidade. Sim, tenho paz, contudo, ela não advém da solidão. Diria mais, tenho paz, a despeito da solidão. Viver só é para poucos. A solidão – pausou para que o silêncio prefaciasse suas palavras – a solidão é para ninguém.
Alguns meses passaram e com eles Seu Ermo. Sempre passo em frente da sua casa; paro e contemplo as várias camadas de folhas e as plantas vencendo a luta contra a velha poltrona já tombada. Só se percebe a silhueta do móvel. Janelas caídas. Telhado incompleto. Ratos. Gatos. Pássaros...
Um dia, diante da velha casa, perdido no tempo e com meus pensamentos, meu filho caçula puxou minha blusa e soltou a seguinte frase:
– Tenho medo dessa casa papai.
– Eu também meu filho. Eu também...

3 comentários:

  1. Pastor, boa tarde. Gostaria de tirar algumas dúvidas com o senhor. Mandei uma solitação no facebook, mas acho que o senhor não viu. O senhor poderia me passar seu e-mail?
    Abraço.

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Perfil

Minha foto
Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.