Nos últimos anos escolhi olhar menos para mim. Era do tipo que
geralmente via o outro (ou “semelhante”, como queira chamar) como um tipo de invasor
escuso. Eram como inimigos – ameaças. Meu primeiro, segundo, terceiro... olhar
era sempre de suspeita. Contudo, dar atenção para as pessoas tem trazido
resultados surpreendentes – diria até, assustadores. Todos, positivos, claro.
O ato inaugurador dessa minha nova fase se deu dentro de minha
própria casa – com os meus. Foi simples, corriqueiro e ordinário; talvez
imperceptível para você que ignora a história do meu egoísmo nada tácito:
calabreei manteiga no pão do meu filho e o entreguei carinhosamente. Tão somente isso. Nada a mais. De volta recebi um
sorriso tímido e doce. Ele sequer revelou seus pequenos dentes de leite. Sim,
era um sorriso. O cantinho da boca ficou delicadamente suspenso. Mais do que a
boca, seu olhar sorria. Sim, era um sorriso autêntico. Estou certo disso. Era um
sorriso para mim; no que sorri para
ele.
Em minha nova jornada, em particular, depois de ajudar uma senhora
idosa em um supermercado, fui surpreendido com uma pergunta vinda de sua boca
frágil e cansada acompanhada de uma voz fraca e trêmula; contudo, profunda:
“Por quem o senhor faz isso?”. No que respondi de chofre: “Pela senhora,
claro!”. Olhando profundamente em meus olhos, passando a mão no meu rosto, disse
amorosamente: “Está certo disso meu
filho?”. Ela permaneceu em silêncio com os olhos fitos nos meus. Não havia
desejo de resposta; somente que eu conduzisse a pergunta para terra da minha
alma visando germinar bons frutos.
Para quebrar o silêncio atordoante respondi secamente: “Por ele!
Faço o que faço por ele”. Seu olhar, contudo, revelava claramente desconfiança
e, ao mesmo tempo, amor. Com um olhar enigmático, mas com indícios suaves de
ironia ponderou: “Espero que o ‘ele’ que você fala seja muito especial, meu
querido. Digo isso porque se me conhecesse e estivesse fazendo isso por mim, saberia que está perdendo seu tempo”.
Duas questões me assolavam a mente depois daquele dia: “Por que ela
não me perguntou o ‘porquê’ eu faço, mas por quem?” e, afinal, “qual a identidade do “ele” em minha instintiva
resposta?”. Fato é que a pergunta voltou a ser emitida por outras bocas.
Crianças, jovens, amigos, pessoas estranhas faziam eco às palavras da velhinha
do supermercado: “Por quem?”. “Por
ele” eu sempre respondia. Sabia, contudo, que se minha resposta seguisse uma
pergunta sobre a identidade do “ele”, o silêncio constrangedor seria minha única
resposta.
Por um tempo abandonei a busca da identidade do meu personagem
misterioso – criado (ou simplesmente percebido) e ignorado por mim. Passei a me
concentrar em sua pessoalidade. “Fazemos
coisas sempre para alguém?”,
perguntava-me. O tom pessoal da pergunta me incomodava. “Não poderia
simplesmente estar fazendo por uma razão qualquer?”, interpelava-me.
Em minhas considerações caminhei pela fisiologia, filosofia,
história e a psicologia. Na fisiologia percebi que nossos olhos apontam para os
outros e não para nós mesmos. O “encaixe dos diferentes” da anatomia sexual revelou-se
um sinal claro de dependência – de completude na união e carência na separação.
Além disso, nascemos da união de dois.
Aprendemos a andar, falar e as coisas mais básicas com os outros. Também percebi que existem semelhança entre nós e outros
animais; porém o abismo é real e brutal. Parte dele se dá pela ausência de
pessoalidade dos nossos “semelhantes”. Na História dei voz aos mortos e
valorizei a tradição – a voz do outro.
Na psicologia aprendi que falar com o outro é um caminho necessário para se reconhecer
e se entender. Na filosofia entendi não posso ser a fonte do sentido da vida. O
fato é que o outro sempre estava lá.
Seja para ajudar, repartir ou ser o agente direto da angústia; ele sempre se
fazia presente. E até em sua ausência, sua presença se fazia presente no desejo
de partilhar da companhia de alguém –
de uma outra pessoa. A solidão é o grito da alma pelo outro. Hoje, fico pasmo
como as pessoas fogem da pessoalidade enquanto despersonalizam pessoas e ao
mesmo tempo não conseguem fugir dela quando personalizam as coisas.
Minhas ponderações sobre essa “onipresença da pessoalidade” me
envergonhavam profundamente. À medida que cavava mais fundo começava a ficar
clara a identidade (antes inconsciente) do meu personagem – o alvo das minhas
boas ações. Depois de um tempo não resisti. Lá estava ele. Era clara a sua
identidade. As pessoas o nomeiam de “orgulho”, outras de “egoísmo”, mas depois
da pergunta no supermercado, acho tais expressões por demais impessoais. Denomino-o de “eu”. Assim, o
“ele” de “para ele” era na verdade o meu “eu”. Quando achava que olhava para o
outro, visava somente a mim mesmo. A mudança descrita nas primeiras linhas desse
texto não era genuína. Era somente o meu eu transmutado ainda com toda sua
força narcísico-destrutiva. O prazer da boa obra e do “obrigado” que a seguia
era o prazer de ser visto e adorado. Meu egoísmo extravagante havia se velado vestindo-se
de boas obras. Meu orgulho se fantasiou de altruísmo. Menti para mim mesmo e
tratei os outros como coisas.
Hoje a pergunta da velhinha do supermercado ainda reverbera em meu
coração. Sim, sempre fazemos algo para alguém.
“Para quem?” é a grande pergunta. Garanto a você que será “para ele”. Só espero
que o seu “ele” não seja o seu “eu” ou ainda um “tu” que te seja igual. Quem é
o teu “ele”? Tem que ser uma pessoa, mas tem que ser mais do que isso.
Pastor, estava refletindo sobre isso hoje pela manhã com uma situação que me ocorreu. Fiquei feliz em ajudar uma pessoa, mas depois comecei a me perguntar o porquê de estar fazendo aquilo e vi que era por mim mesmo. Para minha glória. Pedi perdão à Deus. Esse seu texto veio como que de Deus para minha reflexão -- e creio nisso. Obrigado, mestre. Abração.
ResponderExcluirEh Thiagão! Cara, que bom. Fico feliz pelo "efeito santificador" do texto. Abração!
ExcluirGrande Rômulo! Texto interessante. Esse alguém tem que ser "Deus".
ResponderExcluirValeu Vitor. Abraço em toda a galera da igreja.
ExcluirMuito bom e edificante... há textos que ficam vagando na mente por dias... e esse é um... obrigado Reverendo.
ResponderExcluirPastor, esses dias eu e Anderson tivemos um experiência ruim mas que me fez pensar sobre isso... qual ou quem era o motivo maior pras nossas boas ações. Descobrimos que um cara que ajudávamos na rua, que dizia ter gemeas de oito meses que moravam na rua com ele, estava nos enganando. Minha raiva ao descobrir me revelou que talvez minhas boas intenções não fossem tão boas assim. Texto maravilhoso! Querzia
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