Todos se levantaram em
sinal de reverência quando o juiz adentrou o recinto. Apesar de cheio, o silêncio imperava em todo o tribunal. A tensão estava estampada nos rostos e poderia ser percebida até mesmo na respiração dos partícipes.
Todo aquele nervosismo tinha uma explicação: o julgamento era o estágio final de incontáveis batalhas - todas improdutivas
e penosas.
O advogado de acusação se ergueu,
dirigiu um olhar intimidador para a senhora Liberdade
de Consciência e voltando-se para o juiz disse:
– Meritíssimo, a história dessa senhora é longa e prolixa.
Todos aqui, de alguma maneira, e em algum nível, já experimentaram o poder
devastador dessa mulher. Todavia, tentarei ser breve.
Ergueu o queixo num olhar elevado,
respirou fundo para trazer mais peso e suspense à fala que se seguiu:
– Há séculos essa figura tem causado problemas para
um convívio equilibrado e controlado em todas as nossas igrejas. Quando
discutimos, geralmente alguém a cita para justificar práticas dissonantes.
Aqueles que bebem, por exemplo, dizem que, depois que a conheceram, foram
liberados para tal prática dissoluta. Alguns seguimentos do cristianismo
reconheceram tanto sua importância que, pasmem, para nossa completa indignação
e repúdio, ela foi tema em confissões de fé.
Nova
pausa dramática. A despeito dos seus 1,50m, José
Severo olhava para todos de cima para baixo. Seu olhar corria por cima de
todas as pessoas. Continuou:
– Caso o senhor não saiba, ela é a progenitora do
conhecido Subjetivismo. Logo chegará
a hora de também julgá-lo. Ah, certamente chegará! Contudo, acreditamos que com
a condenação de sua mãe, ele não voltará a atacar nosso reduto. Vou ser direto:
Acreditamos que somente com a morte dessa, dessa... dessa... e gritou: – Dessa depravada! Somente com a morte dela, teremos
uma igreja uniforme; onde não há espaço para diferenças; onde todos tem o
mesmo gosto, onde todos seguem a mesma cartilha, onde cada detalhe é levado a
sério, ou seja, onde todos são cópias idênticas. Ora, todos sabem que essa
senhora faz da Ekklesia de Cristo uma
grande confusão.
Nova
pausa. Silêncio... Caminhada a passos lentos. Com o olhar voltado para o chão e
em tom suave e pausado disse:
– Hoje eu sou o representante do equilíbrio, da
prudência e da paz.
Olhando para o juiz apelou:
– Meritíssimo, como representante do grande Partido dos Coadores de Mosquito queremos a morte da senhora Liberdade de Consciência. Ela é uma ameaça
a todos os ideais de nossas igrejas. Com ela, tudo aquilo que consideramos
padrão simplesmente não subsiste. Aqui findo minha fala.
O advogado de defesa levantou-se
lentamente. O silêncio era tal que se podia escutar o palmilhar de sua caminhada
em direção ao juiz. Em tom ameno iniciou sua fala:
– Meritíssimo quero começar com um esclarecimento. A filha
da senhora Liberdade de Consciência não
tem causado nenhum problema à Ekklesia
de Cristo. Ela é confundida com o filho; digo, filho, não filha, da senhora Graça Barata, o Subjetivismo.
– Ora, respeite-nos! – interrompeu bruscamente advogado
de acusação, – Não me venha encher com seus detalhes
irrelevantes e mentirosos. Aqui está a fotografia de Subjetividade e Subjetivismo,
são ou não são as mesmas pessoas meritíssimo?
O
juiz tomou as duas fotos, ergueu a sobrancelha direita, pressionou um lábio
contra o outro e disse em tom estoico:
– Não há dúvidas. São as mesmas pessoas. Observe nobre
advogado que a roupa tem a mesma cor. Aliás, que cor é essa mesmo?
– Cinza meritíssimo; cinza – respondeu.
O assistente do advogado de defesa
sussurrou por trás:
– Ele só conhece dois tons de cor: preto e o branco.
Rupertus, o advogado de defesa, retomou a palavra:
– Meritíssimo está claro que em uma imagem temos uma
mulher e em outra um homem. Um tem cabelo grande e o outro curto. O que posso mais
dizer para convencê-los de que não são as mesmas pessoas?
– A cor da roupa é a mesma! – interrompeu o juiz deixando
claro que não aceitaria refutações. E ordenou: – Prossiga!
Rupertus continuou:
– Quanto à senhora Liberdade
de Consciência, trata-se da filha de Romanos 14 -15 com 1 Coríntios 8-10.
Seus pais a conceberam e a criaram para ser uma grande aliada da Ekklesia de Jesus. Diferente de Israel,
a Ekklesia é um povo multicultural
onde a variedade de referentes e valores é assombrosa. Ela é simplesmente essencial
ao grande povo de Deus. Sem ela não temos paz. Quero lembrar a todos que ela
não trabalha só. Ela é membro da equipe Unidade
Bíblica. Além dela temos sua irmã Problema
de Consciência, a Palavra e o
líder do grupo, o Amor.
Enquanto discursava Rupertus percebeu que o juiz olhava para
o nada em sinal de desprezo. Porém, continuou:
– O trabalho deles é essencial para unidade do povo de
Deus. A coisa funciona da seguinte maneira: Em primeiro lugar, é importante
entender que Problema de Consciência tem
jurisdição individual. Depois, é importante lembrar que ela só conhece uma palavra,
“não”. Quando as pessoas entram em contato com o cristianismo, ela geralmente se
sobressai. É normal. É ai que entra em cena a Palavra. Ela leva os cristãos fracos e infantis à Liberdade de Consciência e sua
subsequente paz. Nesse processo as
pessoas passam de um estado de fraqueza ou falta de firmeza para uma condição
de força e convicção. O leite forte da Palavra
dá força para a caminhada. Diferente de Problema
de Consciência, Liberdade de
Consciência tem um discurso maior. Toda sua fala é ancorada na Palavra. Além disso, ela tem o poder de
dizer “sim”.
– E o Amor?
Perguntou o juiz.
– Ah, o Amor!
Poderia passar a vida inteira falando dele. Afinal, ele é eterno. Mas pensando
especialmente na peregrinação, partindo da fraqueza até chegar à convicção, o Amor impede a chegada de uma doença
grave que assola todos que escutam Palavra
constantemente – a soberba. Esse vírus assola muitos no caminho rumo à firmeza.
Muitos chegam à firmeza completamente infectados. Com doses de humilde, Amor garante imunidade dos ataques de
soberba e, por conseguinte, garante a unidade. Sem Amor, os irmãos fracos seriam desprezados pelos fortes e os fortes
julgados pelos fracos.
– Conheço o Amor,
gente boa, bom amigo! – disse José Severo.
– Se o senhor está se referindo ao seu parceiro, – interrompeu
Rupertus, – Quero informá-lo que não são
as mesmas pessoas. Refiro-me ao Amor,
não ao Amor Próprio. Acho que são
seus óculos. O senhor e todos que compartilham de suas convicções estão sempre
confundindo pessoas. Há pouco tempo, um dos seus amigos confundiu o senhor Prudência com o senhor Covardia.
Voltou-se
para Liberdade de Consciência:
– Minha cliente tem sido acusada injustamente. Todo
seu trabalho é realizado em equipe. Julgá-la sozinha é uma grande injustiça. O
problema é que nem todos os que têm a convicção que ela oferece se alimentam do
leite dado pela Palavra – que é sua
parceira. Esses, por sua vez, têm suas convicções vindas de Problema de Consciência. Ora, Problema de Consciência nunca teve o propósito
de gerar convicção – isso é injusto. Só Palavra,
com seu leite poderoso, é que têm essa força. Só o leite de Palavra pode levar as pessoas à carne. Ora,
convicção gerada por Problema de
Consciência, sem Palavra e sem Amor é…
– O senhor me considera um fraco ou um forte nobre
oponente? – José Severo interrompeu
novamente.
– Acho que o senhor e o todo Partido dos Coadores de Mosquito estão em outra
categoria. Penso que se consideram fortes, mas também não são fracos. Voltando
para o Juiz disse: – Meritíssimo, para esclarecer essa
questão chamo o grande teólogo de Genebra, o pastor João Calvino.
O
juiz bocejou e assentiu ao mesmo tempo. A figura frágil, lânguida e encurvada que
entrou no recinto despertou olhares descrentes. “Esse homem magro e destituído
de toda beleza traria alguma colaboração para toda essa discussão?”, pensavam.
Sua imagem não revelava quem realmente era – um homem com memória privilegiada, conhecimento vasto da cultura, um profundo conhecedor da Palavra, escritor e pastor. Muitos o
viram como doente – no que estavam certos.
– Reverendo João Calvino, até aonde sei, o senhor
entende que nessa questão envolvendo a senhora Liberdade de Consciência, não existem somente fracos e fortes. Se
há um terceiro elemento como o senhor propõe (e creio); quem seria?
Com
uma das mãos Calvino abraçou e acariciou seu longo cavanhaque. Tirou seu capuz
e disse com voz forte:
– Antes de qualquer coisa, alguns esclarecimentos
precisam ser feitos. Primeiro, trata-se de um assunto de grande importância. Sem
o entendimento correto dessa temática não haverá repouso ou segurança para
nossa consciência e não terão fim nossas superstições. Segundo, antes de ser
filha de Romanos 14-15 com 1 Coríntios 8-10, senhora Liberdade de Consciência é filha da Cruz. É com essa senhora que temos paz com Deus e com os homens. Terceiro,
não podemos esquecer que estamos lidando com questões indiferentes – adiáforas.
– Vinho não é uma questão indiferente! – gritou José Severo. Enquanto apontava e meneava
o polegar em direção à boca, em tom de deboche disse: – Até onde sei o senhor é um consumidor de vinho.
– Em nenhum lugar a Escritura proíbe ao homem rir ou
fartar-se ou adquirir novas propriedades ou deleitar-se com instrumentos
musicais ou beber vinho. Agora queria continuar minha exposição.
Visivelmente irritado voltou-se
para o povo:
– Existem dois tipos de escândalos: os causados e os
supostos. Sem essa distinção não poderemos ter vida tranquila com a senhora Liberdade de Consciência. Coisas
necessárias, por exemplo, devem ser realizadas sem medo de causar escândalo.
Agora, se alguém, por leviandade, intemperança ou temeridade indiscreta, em
tempo ou lugar inoportuno faz alguma coisa que escandalize um fraco, sim,
podemos dizer que esse escândalo foi causado. Por outro lado, existem pessoas
que por malícia e rigor deplorável estão sempre caçando o que morder e
censurar. Esses não são vítimas de escândalo. Eles supõem o escândalo, mas na
realidade não foram causados. São fariseus, não fracos. Essa última frase foi
proferida enquanto olhava para José
Severo.
– Fale-nos um pouco sobre a senhora Liberdade de Consciência – pediu Rupertus.
– Alguns não sabem lidar com ela. Isso é um fato. Uns
acham que devem exibi-la o tempo todo. Nossa amizade com ela é necessária, mas
deve ser administrada com o cuidado suficiente para não desprezar os fracos.
Muitos, depois que a conhecem, causam tumultos em seu nome. Contudo, quando ouvimos
seu líder, Amor, aprendemos a
descosturar sem romper com violência. Ora,
ela nos liberta não somente para fazer, mas também para abster-se. A lógica é
simples: coisas indiferentes devem ser consideradas indiferentemente. Voltemos
para o terceiro elemento – o fariseu. Quanto a ele, Amor é claro: Devemos atentar para a ignorância dos nossos irmãos e
não para o rigor farisaico dos Coadores
de Mosquito.
– Então, até aonde entendi, nobre pastor, as acusações feitas
à minha cliente são fruto de convicções não geradas pelo leite e a carne da Palavra e sem a presença de Amor. Até aonde sei, os dois já foram
condenados por esse mesmo tribunal.
– Devemos evitar Liberdade
de Consciência porque ela choca as pessoas, escandaliza as pessoas. Isso é desprezar
o Amor – José Severo interrompeu
rudemente.
Calvino,
que tinha propensão natural para irritabilidade, retrucou firmemente:
– Na verdade, manter pessoas, sem convicção gerada por Palavra, só mostra o quanto desprezam o Amor. O senhor age como forte querendo
preservar o fraco, mas sua convicção não vem da Palavra. Fraco, porém, o senhor e toda sua corja não são. Nessa questão
envolvendo essa nobre senhora, obedecemos ao Amor de duas maneiras. Ou você, como forte, cuida do fraco o
acolhendo e dando o leite da Palavra ou
você, como fraco, não julga o outro enquanto não tiver a força que o leite de
dá. Olhe para você! Olhe para sua alma! Não vê que não pode alimentar ninguém? Seu
alimento não pode dá força aos outros; você não consegue nem alimentar a si
próprio. O leite que o senhor bebe é de Problema
de Consciência. Ele tem sua função por um tempo, porém quando dado aos
outros ou quando passa sua validade, é aguado. Aliás, não somente é aguado, é
tóxico. Em suma, o senhor é o que chamo de fariseu. Respondendo a pergunta de Rupertus; nessa matéria existem três tipos
de pessoas: os fracos, os fortes e os fariseus.
– Mas… – José
Severo quis interromper, porém sem
sucesso.
– Ainda não terminei. Olhando no fundo dos olhos de José Severo foi enfático: – Alguns, como o senhor, fingem seguir o exemplo de Paulo abstendo-se da
amizade com a senhora Liberdade de
Consciência, não porém no interesse de seu líder Amor, mas, visando sossego e tranquilidade, gostariam de matar essa
nobre senhora. Contudo, a verdade é que a senhora Liberdade de Consciência é mais lícita e necessária, digo,
necessária, para a edificação dos nossos semelhantes do que restringi-la para o
bem deles.
Gritou um homem no meio do povo:
– Amém! Minha consciência está cativa à Palavra!
Rupertus olhou para seu assistente para
tentar entender o que estava acontecendo ou quem tinha proferido aquelas
palavras.
– Foi Lutero – sussurrou o assistente.
– Já desconfiava. Retomando o tom aberto de sua fala, Rupertus disse:
– Obrigado senhor Calvino, o senhor ajudou muito. Excelência,
queria chamar o senhor Escândalo.
O pequeno e quase invisível homem
entrou rápido e logo estava diante de Rupertus,
que o interrogou:
– O senhor é constantemente acusado pelo Partido dos Coadores de Mosquito de atacar seus membros com a ajuda dessa
senhora. Isso é verdade senhor Escândalo?
– Não. O problema com esse grupo é que estão sempre
confundindo as pessoas. Eles confundem Subjetividade
com Subjetivismo; Legalismo com Espiritualidade. Sou mais uma vítima dessa confusão tão comum entre
eles. Eles constantemente me confundem com meu irmão, o Desagrado. Sempre que as pessoas são vítimas dele; levo a culpa. O problema com essa troca de
identidade é que minha fama de derrubar pessoas da fé está se perdendo. Se é para
ser culpado de alguma coisa, que seja da queda de um cristão sem convicção, não
de um desconforto fruto do egoísmo e do rigor farisaico. Quando Jesus e Paulo
falaram de mim, minha fama correu o mundo. Fiquei conhecido como aquele que destrói
a fé das pessoas fracas, que espanca consciências frágeis e atrapalha a
divulgação do Evangelho. Hoje, quando as coisas não estão do jeitinho que as pessoas esperam, elas
dizem que foram atacadas por mim. Tudo isso começou com esses caras que o
pastor João Calvino corretamente denominou de fariseus. Para dar peso às suas
acusações, me culparam. Quando me culpam aparentemente estão seguindo as
palavras do apóstolo Paulo que corretamente alertou do perigo que sou para a Ekklesia de Cristo. Assim, quando eles
julgam alguém que foi alimentado pela Palavra
e está convicto, dizem que foram atacados por mim. Não sou amador. Fui feito
para derrubar. É isso que faço. Podem me condenar por atrapalhar o Evangelho,
mas não quero ser responsabilizado pelo julgamento desses caras.
– Que tipo de pessoa o senhor derruba ou atrapalha?
Perguntou Rupertus.
– Fracos e descrentes. Fariseus não são derrubados por
mim, eles tropeçam em mim – o que é bem diferente. Lembrem-se de Jesus. Ele
viveu em companhia de uma corja de pecadores e ofereceu seu amor às mulheres de
má fama, contudo ele nunca me permitiu atacar ninguém em todo seu ministério. As
pessoas é que tropeçavam em mim.
– Tenho uma curiosidade. O senhor já fez algum pastor
tropeçar?
– Sim! Mas isso é raro. Pelo menos deveria ser. Não
podemos esquecer que pastores não podem ser fracos. Raramente os ataco. Eles,
sim, é que me atacam. Em sua grande maioria são fariseus. É simples de entender.
Muitos pastores não são amigos de Palavra.
Como são figuras que devem passar firmeza, devem buscá-la em algum lugar. Muitos
têm buscado na dupla Tradição dos Homens e
Firmeza sem Fundamento. Agora, imaginem
só que mistura explosiva: firmeza sem Palavra.
O pior é que no Partido dos Coadores de Mosquito essa condição não
somente é real, ela já cristalizou.
– Não tenho mais nada a dizer excelentíssimo.
– Palhaçada! Grande palhaçada! – José Severo levantou–se enquanto gritava e batia palmas lentamente –,
Acabamos de ver a apresentação dos palhaços Rupertus,
seu escudeiro João Calvino e o anão de jardim Escândalo também conhecido como pedregulho. Voltando a um tom afável
disse: – Pelo amor de mim mesmo, vamos ouvir
alguém sério. Excelentíssimo! Queremos ouvir Tradição dos Homens.
Era
um homem grande a ameaçador. Provocava sentimentos díspares. Alguns sentiam
segurança, outros o odiavam.
– Nobre Tradição
dos Homens, em primeiro lugar, quero declarar publicamente todo meu apreço
e adoração. Para nós do Partido Coadores
de Mosquitos sua palavra sempre tem maior valor. Quando temos divergências,
ouvimos a tua voz e tudo se resolve. Ora, quem há de proferir qualquer palavra
contra ti? Somos o que somos por sua existência. Curvou-se em sinal de
adoração. – O senhor conhece aquela senhora de cinza?
O que senhor tem a nos dizer sobre ela?
Dirigindo seu olhar firme e
austero a todos respondeu com uma voz forte enchendo todo o recinto:
– Liberdade de
Consciência foi minha amiga por pouco tempo. Simpatizei
com ela, mas não suportei por muito tempo. Ela só queria trabalhar em equipe. Dizia
que era da sua natureza. Que absurdo! – gritou. Respirou fundo e continuou em
tom ameno: – Foi então que descobri que ela tinha uma vizinha chamada Firmeza Sem Fundamento. Foi amor à
primeira vista. A empatia foi extremamente produtiva. Tivemos um filho, o Legalismo. Para nosso orgulho, sua
importância é tal que, mesmo sem ter morrido, já é nome de cidade. Eu e Firmeza Sem Fundamento escrevemos muitos
livros juntos: Só Nós Estamos Certos foi
o primeiro. Depois veio o Estudar é um Perigo.
Mas fiquei conhecido mesmo com Buscai Em
Primeiro Lugar a Uniformidade. O mais vendido foi Minha Facção é Assim e Vai
Ser Sempre Assim – um tratado sobre firmeza. Todos são
clássicos do Partido Coadores de
Mosquitos. Estamos agora escrevendo um novo, cujo título é O Que Nos Separa Vale Mais Do Que O Que Nos
Une.
– Não se esqueça de A Liberdade de Consciência é Uma Ameaça – disse José Severo.
– Claro! Como poderia esquecer?! – expressando um leve
sorriso de canto.
– Não tenho mais nada a dizer! - disse José Severo enquanto apertava a mão de Tradição dos Homens.
– A palavra está com o advogado de defesa – declarou o
juiz.
– Não vou fazer pergunta alguma. Apresentarei
simplesmente uma leitura de sua história pessoal. Caso discorde, estou aberto
às suas colocações. Certamente elas serão importantes para esse julgamento. A
realidade é a seguinte: Seu primeiro problema foi que, em determinado momento,
não suportou o silêncio de sua antiga amiga, a Palavra. Você queria que ela dissesse “não” enquanto ela ensinava
que, em si, as coisas que você queria proibir categoricamente não eram pecado. Percebeu
que o que ela oferecia era muito maior do que você imaginava. Ficou chateado
quando Palavra te chamou para o canto
e foi direta: “pois tudo que Deus
criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável”. Você não conseguiu digerir essas palavras.
Tradição dos Homens olhava para Firmeza Sem Fundamento. A despeito da
ausência de palavras, havia comunicação clara entre eles. O advogado de defesa
estava expondo as reais razões que os uniram. Isso não era nada confortável.
Rupertus continuou:
– Outro problema foi que a incredulidade dos
religiosos o acometeu. Liberdade de
Consciência o perturbou porque você não creu quando Palavra lhe disse: “Quem és tu que julgas o servo alheio? Para o seu
próprio senhor está em pé ou cai; mas estará em pé, porque o Senhor é poderoso para o suster”. Não é você que mantém as pessoas na fé. E este fato o perturba. Não estar no controle o perturba. Você sofre da inquietação dos incrédulos. Foi nesse
momento que Firmeza sem Fundamento
entrou na sua vida. Ela te dava as restrições que a Palavra não estava disposta a dar e ao mesmo tempo oferecia um
campo de segurança mais forte (na sua perspectiva, claro) que a promessa da Palavra. Então, seu discurso sobre as questões adiáforas, que antes era
apenas uma coletânea de princípios, conselhos e opiniões, depois do casamento
com Firmeza sem Fundamento, cristalizou-se;
tornando-se um sistema canônico aonde a única palavra que Palavra poderia pronunciar era “amém”. A paz que você prega, é
cara, pois é à custa da Palavra. Hoje
vocês querem a morte dessa senhora porque já mataram Palavra e o Amor. Estou
certo?
O
zum… zum… zum correu solto na sala. Rupertus
continuava olhando fixamente para Tradição
dos Homens. Este se limitou a responder com a boca semicerrada:
– Sua convicção me assusta. Firmeza sem Fundamento nunca…
– Obrigado nobre Tradição
dos Homens – interrompeu José Severo,
– Vossa excelência, queria chamar ao julgamento o Senhor Jack Lewis.
Rupertus ficou surpreso. “Como poderia
chamar Jack?”, pensou. A incoerência dos Coadores
de Mosquito não tinha limites. Porém, Rupertus
lembrou que eles costumavam ler, citar e até sacralizar homens que nunca
poderiam pregar em seus púlpitos e participar de sua comunhão.
Jack
era um homem calvo, pele branca e vestia paletó. José Severo não acreditou no que via: sua testemunha trazia um
cachimbo. Assustado se dirigiu a seu
assistente:
– Você não me disse que ele fumava!
– Acho que não conhecemos bem quem temos lido.
– Caro senhor Lewis. O senhor poderia apagar seu
cachimbo? Pediu José Severo em tom nitidamente reprovador.
– Jack! Me chame de Jack, por favor! Quanto ao
cachimbo, sim, poderia apagar, mas por amor ao senhor, vou mantê-lo abrasado! E
não diga que está sendo atacado por Escândalo,
pois consigo vê-lo na primeira fila. Sua irritação tem outra explicação.
– Ok! Senhor Jack Lewis.
– Só Jack!
– Ok! Senhor Jack, o senhor é considerado uma mente
cristã privilegiada. O que o senhor diz de tudo isso?
Jack
deu uma baforada em seu cachimbo e disse:
– Vou ser direto. E por favor, não quero ser
questionado em seguida. Essas serão minhas únicas palavras sobre o assunto: Uma
das marcas de um certo tipo de mau caráter é que ele não consegue se privar de
algo sem querer que todo mundo se prive também. Esse não é o caminho cristão.
Um indivíduo cristão pode achar por bem abster-se de uma série de coisas por
razões específicas – do casamento, da carne, da cerveja ou do cinema; no
momento, porém, em que começa a dizer que essas coisas são ruins em si mesmas,
ou em que começa a fazer cara feia para as pessoas que usam essas coisas, ele
se desviou do caminho.
– Obrigado senhor C. S. Lewis. José Severo não acreditava no que tinha feito.
– Jack! Só Jack!
– Já ouvi muito. Interrompeu o juiz. Levantou-se e
com ele todos os presentes.
Seguiu-se a sentença:
1. Liberdade de Consciência será morta
como sua amiga Palavra e seu líder Amor. Todas as consciências estarão
presas à Tradição de Homens. Ela será
a base para a declaração de fé do grande Partido
dos Coadores de Mosquitos. Serão
somente seus gostos e suas regras.
2. Todos os pastores serão unidos não pelas verdades objetivas
fundamentais como o Credo Apostólico e as bandeiras da Reforma. Todos deverão seguir
o senhor Tradição dos homens. A base
da nossa união serão os pormenores – coisas secundárias.
3. Romanos 14-15 e 1Coríntios 8-10 serão excluídas das Escrituras. O
senhor Escândalo que antes era
culpado de levar o fraco ao pecado e atrapalhar o reflexo da luz do Evangelho
ao incrédulo, agora será o culpado por nossos julgamentos sem o Amor e sem Palavra.
4. Será proibida a distribuição de leite que leve as pessoas à carne. Deverá
ser distribuído o leite aguado de Problema
de Consciência. As pessoas deverão ser eternas crianças.
5. Seremos firmes como os fortes de Romanos 14 e carentes da Palavra como os fracos.
6. Por fim, a famosa frase de Rupertus Meldenius: “In
necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas” (No essencial, unidade, nas coisas
duvidosas, liberdade, em todas as coisas, caridade) será banida de todos os livros. Em seu lugar
colocaremos Nos pormenores, uniformidade.
E foi assim que o Partido dos Coadores de Mosquito
decretou a morte da Liberdade de Consciência.
Ela foi sepultada junto a Palavra e Amor no limite das cidades Legalismo e Religiosidade, pois ambas as cidades queriam seu corpo como prêmio.
Há quem diga que um dia todos eles
voltarão dos mortos. Que voltem!
Simplesmente fantástico, muito bom pastor, o senhor tem um maravilhoso dom. Dentre muitas frases fortes, uma chamou minha atenção "quando ouvimos seu líder, Amor, aprendemos a descosturar sem romper com violência." Amém, sem palavras para descrever a interrupção cheia de amor de Lutero, sobre a belíssima argumentação de Calvino e a maestria de C.S. Lewis. Valeu Pastor, Quem escreve é sua ovelha, com muito orgulho, no bom sentido da palavra. Barroso
ResponderExcluirValeu Barrosão! A participação das minhas ovelhas é sempre especial, pois não vejo somente as palavras escritas; vejo as palavras de uma alma que amo muito. Abração e obrigado pela atenção dada.
ResponderExcluirMuito bom Pr. Rômulo, parabéns! De fato, muitas vezes somos seduzidos pela Tradição dos Homens e levados à Firmeza sem Fundamento. Muitas vezes podemos ser justamente condenados de escandalizar por não obedecermos ao líder Amor e violarmos consciências fracas em questões periféricas. Deus possa nos guiar sempre pela Palavra anunciada com Amor!
ResponderExcluirNelson Ávila.
Valeu Nelson. É sempre bom ter o feedback dos meus alunos. Parece que a turma entendeu. Fico feliz. Abração!
ExcluirParabéns Pr. Rômulo. Muito bom o texto! Muitas vezes somos tentados pela tradição dos homens à vivermos com base numa firmeza sem fundamento, e a violar consciências pela ausência da Palavra com amor. Deus nos ajude a alimentarmos-nos da Palavra a fim de que possamos usar nossa liberdade de consciência com amor para a glória dEle.
ResponderExcluirÓtima demolição poética do legalismo, que por diversas vezes tem minado as nossas igrejas. É com maestria que esse artigo foi escrito, evidenciando o caráter nocivo de algumas denominações que colocam tradições humanas-farisaicas à frente da Palavra de Deus. Um abraço, Pr. Rômulo.
ResponderExcluirDiga meu amado André, obrigado pela análise. Pegou bem a proposta do texto. Que Deus abençoe seu ministério ai no sul. Abração!
ExcluirProfessor, gostei muito do texto; é empolgante ler e sentir envolvimento pelo caso neste "julgamento", posso dizer que "acertou no ponto". Temos que analisar a nós(leia-se: me analisar) mesmo, para não cairmos nesta cilada.
ResponderExcluirUm abraço Pr. Rômulo!
Diz homem!
ExcluirBoa observação. Creio que temos um pouco de fariseu dentro de nós. É sempre bom estarmos nos vigiando. Abração! Vou sentir sua falta no próximo semestre.
Que agradável leitura!
ResponderExcluirMais uma vez digo: texto extremamente edificante.
Fez-me refletir bastante acerca de atitudes, pensamentos e posicionamentos próprios.
Como exposto, que tomemos do leite que leva à carne, e saiamos do leite aguado, e como disse Lutero que nossa consciência esteja cativa à Palavra!
Abração
Diz Marcelão,
ExcluirObrigado pelo feedback.
Avancemos rumo à carne seguindo a liderança do amor. E que Deus nos guarde da soberba.
Abração meu brother!
Graça e Paz!
ResponderExcluirExcelente alegoria, até me recordou John Bunyan. Pena que muitos quando lerem esta crônica, agirão como os habitantes da Cidade da Feira das Vaidades.
Caro companheiro, tens a graça e o dom de expressar com a pena, o que Deus lhe concede no coração.
Certamente, caso me permita, vou copiar esta pequena, porém profunda historia e repassar para alguns amigos.
Sinceramente, no amor de Cristo
Pr Sandro
Prezado Sandro,
ExcluirObrigado pelas palavras. A comparação com Bunyan mexeu comigo visto que, para mim, depois das Escrituras Sagradas, O Peregrino é o melhor livro já produzido. Fique à vontade para a utilização do texto. Que Deus seja glorificado em tudo.
Abração!
"Partido dos Coadores de Mosquitos"! Pr. Rômulo se eu estivesse comendo peixe assado lá na "Dona Diva" teria me engasgado de tanto rir. Aliás eu conheço o presidente desse partido (PCM) é o Dr. Engole Camelo.
ResponderExcluirVou aqui por um pouco de tempo ressuscitar a Senhora Liberdade de Consciência para dizer: "CARACAS" Pr Rômulo, fantástico texto. Deus o- abençoe.
ResponderExcluirExcelente!
ResponderExcluirParabéns.
Simplesmente d+ participação de Calvino foi de enche os olhos. Thiago Silva.
ResponderExcluir