Na terça feira da última semana do Seu ministério terreno, o Senhor
Jesus proferiu uma de Suas mais duras mensagens contra os líderes religiosos
dos Seus dias. Por sete vezes ele se dirigiu ao Seu público como “hipócritas”. As
sete repetições do vocativo certamente não revelam uma possível falta de
criatividade do mestre de Nazaré; antes, expõe nitidamente Sua profunda
indignação ante ao quadro religioso que se impunha a Ele na festa mais
prestigiada dos judeus – a páscoa.
O recurso da repetição torna indesculpável tanto o interprete mais
descuidado como o mais profundo conhecedor do grego do primeiro século. Todos os
que leem Mateus 23 concluirão igualmente: “Não há dúvidas; Jesus odeia a
hipocrisia”.
Estou certo de que a grande maioria das pessoas (incluindo os
hipócritas, claro), numa primeira leitura reagiria positivamente à condenação à
hipocrisia. Se Jesus se referiu aos líderes religiosos como hipócritas por sete vezes; hoje, muitos, em muito, tem
superado Suas sete repetições. “Hipócrita” é uma daquelas palavras sofridas e
surradas pelo uso. Nesse mesmo grupo encontramos outras igualmente sofridas
como “amor”, “preconceito”, “opressão”...
Entretanto, entre o uso da Segunda pessoa da Trindade e o feito em
nossos dias há um fosso abissal. Não me refiro somente ao tempo (dois mil anos),
mas à semântica também. O significado mudou. Na boca de Cristo, a condenação era
contra aqueles que tinham uma preocupação demasiada com as aparências. Porém, diferente
do uso atual, a questão não era tanto que elas não revelaram tudo o que pensavam ou eram, mas porque simulavam exatamente
o que não eram. Ou seja, em Jesus, o hipócrita mostra o que não é. Hoje, ser hipócrita é não mostrar o que é.
Atualmente a acusação de hipocrisia é usada contra toda forma de
moral. “Hipócrita” tem tornado-se sinônimo de “falso moralista”. Por falso
moralista entenda-se qualquer pessoa que, por ser humana e falha (ou seja,
todos), não tem o direito criticar
qualquer ato como errado ou repulsivo exatamente porque seus erros a impedem de
tal crítica. Assim, a acusação moderna
de hipocrisia (ou falso moralismo) passa a ser um “recurso virtuoso” para se
defender de qualquer tipo de condenação moral. A resposta às críticas é
sempre: “quem é você para me julgar seu hipócrita?”. Em outras palavras, na “nova
hipocrisia” não se pode julgar nada. Só se pode julgar o julgamento.
Vou exemplificar: É comum os defensores das práticas homossexuais
acusarem todos aqueles que se opõem de hipócritas. Há artigos que defendem que
alguns que espancam gays são gays descarregando a raiva contra sua própria
homossexualidade. Bem, eu diria que tais espancadores tão são indignos do
convívio em sociedade quanto qualquer outra
pessoa que usa da violência, com qualquer
ser humano se não para a defesa ou heroísmo. Mas, na lógica de muitos, eles
são hipócritas porque não estão revelando o que realmente são.
O documentário OUTRAGE, por
exemplo, defende que muitos dos opositores aos direitos dos homossexuais são na
verdade homossexuais. A própria terminologia “homofobia” pressupõe isso. A pergunta
aqui é: Alguém com desejos homossexuais não pode condenar o homossexualismo? Alguém
que tem o desejo homossexual o terá sempre? Alguém que tem desejos errados deve
se orgulhar disso? O desejo sexual por crianças impede o autor do desejo de
condenar a pedofilia? Alguém que tem o desejo de adulterar não pode condenar o
adultério? Ora, por que penso em ou desejo uma coisa quer dizer necessariamente que gosto e devo fazer
apologia a ela? Por que fiz algo de errado isso me impede de ver isso como erro?
Que loucura!
Seguindo a lógica da “nova hipocrisia”, muitos adolescentes, de posse
da “ficha corrida” de seus pais, deveriam apontar o dedo em riste acusando seus
progenitores de hipocrisia também. “Quem é o senhor para me julgar?”, “Segundo
consta, o senhor foi expulso da sala no sexto ano”, diz o adolescente. E ainda:
isso faz do cara que roubou um chiclete quando tinha dez anos se calar (não
criticar ou julgar) quando assiste a notícia do assalto ao Banco Central. Ele
imagina a dona do estabelecimento adentrando a sala de sua residência e o
chamando de hipócrita e falso moralista.
Imagine o julgamento de um estuprador. O juiz lê a sentença de
condenação e logo em seguida o advogado de defesa o repreende: “Seu hipócrita!
Você nunca desejou a mulher do próximo?! A diferença entre você e este homem é
que ele colocou seus desejos em prática. Hipócrita! Hipócrita! Hipócrita!” O
policial ao lado, por sua vez, interrompe o advogado: “Hipócrita! O que o juiz
está fazendo é o mesmo que o senhor fez com sua esposa expulsando-a de casa porque
ela o traiu. Ela só estava colocando seus desejos em prática, nobre advogado.
Ela não estava sendo hipócrita como o senhor”.
Bem, vamos parar por aqui, caso contrário nossa sequencia de acusações
se prolongaria até findarmos com um coral formado por toda humanidade gritando em
uníssono: Hipócrita! Hipócrita! Hipócrita!
Dessa forma, o cristão sempre será considerado um hipócrita, pois muitas
vezes condena o que antes já cometeu. O Salmo 51, por exemplo, nos ensina a
sermos hipócritas. Para quem não lembra, temos a confissão de um adúltero e
assassino. Depois de confessar o pecado a Deus, Davi assegura que ensinará aos
transgressores os caminhos do Senhor. Entre o pecado e o ensino contra o mesmo
pecado, temos o arrependimento – a mudança e o perdão garantido. Ou seja,
aquele que condena já não é o mesmo que pecou. Interessante o que temos nesse
grandioso salmo: o que peca ensina a não pecar. Curioso, pois é comum ouvir:
“Quem é você para me dizer que isso não pode?”, “Sei o que você fez?”. Em
seguida temos a virtuosa acusação:
“Seu hipócrita”. Assim, segundo o conceito atual, Davi não é um homem segundo o
coração de Deus, mas um grande hipócrita.
Chegamos a um ponto interessante de nossa análise. Observe que a
impossibilidade de julgamento gerada pela “nova hipocrisia” está diretamente
relacionada à ausência do perdão genuíno. Arrependimento e perdão são as pedras
de tropeço do Evangelho de Cristo no discurso da “nova hipocrisia”. Segundo as
Escrituras, o perdão e o arrependimento nos autorizam a julgar (não condenar) e/ou
a reconhecer o erro do outro. Numa cultura que rejeita a cruz, não há
autorização para acusações.
Tanto em Jesus quanto no uso atual, “hipocrisia” é uma questão de
coração. Quando Jesus acusou os líderes de hipocrisia, Ele estava assegurando
que eles eram externamente o oposto
do que era internamente. O mesmo
acontece quando alguém hoje nos chama de “hipócrita”. Ele está falando partindo
do pressuposto que conhece nosso coração.
Bem, creio que podemos, sim, em algum nível, conhecer as intenções dos
corações de outras pessoas. Posso dizer que conheço tão bem algumas das minhas ovelhas
que sei suas reais intenções. O mesmo acontece com meus filhos, minha esposa e alguns
alunos. Por outro lado, podemos ser ignorantes tanto das intenções dos outros
quanto das nossas próprias. E é exatamente quando julgamos as intenções de
forma errada que revelamos nosso próprio coração.
É simples, nem tudo que você deseja e pensa representa exatamente o outro.
Vamos ilustrar com pessoas ciumentas. O ciúme pode ter muitas razões. A
incredulidade e idolatria, por exemplo, explicam muitas manifestações de ciúme.
O que o ciumento não percebe é que muitas vezes seu ciúme é uma condenação dos
seus próprios pensamentos. O cônjuge que diz em tom de acusação: “Vi como você tratou fulano(a)” está dizendo que quando
trata uma pessoa da mesma forma tem intenções
pecaminosas. Contudo, o mesmo não necessariamente
é certo sobre o cônjuge acusado. Quando um filho da “nova hipocrisia” aponta o
dedo, muitas vezes é injusto e só está revelando seus próprios desejos.
O fato é que os modernos condenadores da hipocrisia são igualmente
hipócritas. Estou certo de que eles não dizem tudo o que pensam. Nenhum deles
suportaria as palavras despidas da “hipocrisia” tão odiada e julgada. Não
suportariam a verdade de suas feiuras encobertas pela toxina botulínica, do
fracasso familiar, do medo da morte, da infelicidade encoberta pelas compras e pelo
entorpecimento do entretenimento. Estou certo de que os atuais condenadores da
hipocrisia tapam a boca no velório de amigos e parentes. Mesmo sabendo que o
morto era o pior dos maridos, ainda encontram palavras como “Nunca deixou
faltar nada em casa”. Que hipocrisia!
Uma das grandes acusações feitas às igrejas é que elas estão cheias de
hipócritas. Bem, em primeiro lugar, sim, é verdade que é possível, para ser
mais exato, é muito provável termos muitos hipócritas nas igrejas. Creio que o
ambiente religioso é bem propício para isso. Por outro lado, se a
acusação está seguindo a “cartilha da moderna hipocrisia”, diria que todos devem ser hipócritas na igreja. Ora, não
devo tratar meus filhos e esposa na igreja como os trato em casa. É lógico. Isso
não é falsidade, é simplesmente reconhecimento de contextos distintos. Será que
quando ensino meu filho de 10 anos a não falar tudo o que pensa de alguém estou
lhe ensinando a hipocrisia? Não seria isso prudência?
Pensei nas palavras do apóstolo Paulo em 1 Coríntios 9.20-22: Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus;
para os que vivem sob o regime da lei, como
se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora
não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como
se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei
de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco para
com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o
fim de, por todos os modos, salvar alguns. Enquanto
o mundo diria: “Que grande hipócrita!” Nós dizemos: “Que grande amor pelo
Evangelho”.
Uma das facetas da “nova hipocrisia” é que ela fomenta a cultura do
cara-de-pau. A expressão “católico não praticante” é bom exemplo disso. Existe
algo mais cara-de-pau? Nada mais não-hipócrita, não é mesmo!? Ora, isso não é o
mesmo que um mecânico que não consegue trocar um pneu se denominar “mecânico”? Um
vereador não eleito denominar-se “vereador”? O dono de uma empresa falida se
denominar “empresário”? Um professor analfabeto…? Um locutor mudo…? ad infinitum. Na “nova hipocrisia” o
cara pode se autodenominar “católico não praticante”, e ainda dizer: “pelo menos
não estou sendo hipócrita”. Que cara-de-pau! Creio que não vai demorar muito para
termos a “versão gospel” da expressão: crente não praticante.
É interessante notar que a cultura das rédeas morais soltas que aponta
o indicador para o hipócrita, aponta os outros três dedos contra a falsidade da autoestima. A boca que
acusa o cristianismo de hipocrisia, por não entender o perdão da cruz, é a mesma
que prega que devemos acreditar em nós mesmos. Nada mais realmente hipócrita do que a mensagem do “eu posso”, “eu vou
conseguir” tão constante nos programas “imbecilizadores” da TV. Não é estranho
que a mesma cultura que não permite que mintamos para os outros sobre quem realmente somos permite e incentiva
a mentira para nós mesmos? O fato é
que a mentira da autoestima não resiste muito tempo diante da verdade da
incapacidade, da feiura, da desigualdade, da tristeza, da violência – a máscara
não resiste. Então, só fica a depressão.
Sinceramente, devemos, como cristãos, tomar a acusação de hipocrisia como
um elogio. Se hipócrita é aquele que não
fala tudo o que pensa e que condena o
que pode ou já realizou, certamente sou um grande hipócrita. Diria mais, lutarei
com muita oração para continuar sendo o maior hipócrita de todos, pois o
contrário de hipocrisia é imprudência. As pessoas não precisam nem suportariam
tudo o que se passa pela mente de um pecador, dos quais eu o principal.
Olha só o que o tempo faz!
Antigamente os efeminados eram denominados de “mulherengos”, hoje o significado
é exatamente o contrário. A dinâmica da língua somada ao tempo decorrido me
leva a afirmar: “Ame aos seus irmãos com hipocrisia”. Seja prudente em
suas palavras e, depois de analisar seus próprios pecados (sem hipocrisia, ou seja,
arrependido diante de Deus), ajude seu próximo com os dele, os revelando com
amor.
Belo texto, professor!
ResponderExcluirSegundo a "nova hipocrisia", o próprio Jesus Cristo seria taxado de hipócrita, "pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz." (Filipenses 2:6-8).
Abraço e que Deus continue te abençoando!
Prezado Deyvison,
ExcluirMuito interessante seu insight. Ele enriqueceu o texto. Valeu mesmo! Abração. Espero um dia encontrá-lo.
Na semana passada minha filha de 8 anos me apontou o dedo quando a repreendi sobre sua preguiça, em seguida falei-lhe da sua rebeldia e nos entendemos, graças a Deus. Após a leitura do texto consigo entender que a visão do mundo está cada vez mais turva com o conceito de hipocrisia. A empatia não existe mais, quando exortamos alguém não se trata de apontar a pessoa, mas de alertá-la quanto a uma situação de risco ruim, que possivelmente já experimentamos, como igreja precisamos pensar em como levar os outros a pratica das boas obras e exercício do amor, nem sempre seremos aceitos, mas se entendemos como missão não podemos desistir.
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