– Posso sentar?
– Fique à vontade.
– O que está achando de nossa escola? É sua
primeira vez aqui, não é?
– Sim…
– Sei que é – interrompeu Fobiano, empolgado pela abertura que o senhor desconhecido dera ao
diálogo – Estou sempre por aqui e nunca vi o senhor. E estou certo de que se o tivesse
visto uma vez só, seria o bastante para não esquecer.
– Como estava dizendo – continuou o visitante –,
sim, é a primeira vez que venho aqui. E se quer saber se estou gostando; pois bem,
não posso dizer nada ainda, pois como você mesmo sabe, a aula ainda não
começou. Agora, se quer saber da minha opinião sobre as instalações da escola, sinceramente,
isso não me importa. O mesmo diria da oratória do professor. A sabedoria e a
ignorância, nobre colega, são mais ou menos como os alimentos úteis ou nocivos:
podem ser apresentados através de palavras polidas ou rudes, como os bons e os
maus alimentos podem ser servidos em pratos finos ou grosseiros.
– Entendi. Não queria ser inconveniente, mas o que
trouxe o senhor aqui?
– Um sonho.
– Sei – Fobiano
respondeu pensativo – o senhor tem o sonho de ser pastor e procurou uma
escola de teologia. É isso mesmo?
– Não! Não me refiro a “sonho” como uma expectativa
de vida, mas como revelação divina.
– Hum! – Fobiano
ergueu os olhos e as sobrancelhas num ar de incredulidade e desdém.
– Acho que não acredita nesse tipo de coisa, não é?
– O visitante estampava um leve sorriso de canto. Era uma mistura de
tranquilidade e misericórdia.
– Bem, como dizer? Sou um cristão conservador e
creio que tudo que preciso está revelado nas Sagradas Escrituras. Para ser bem
direto, não, eu não creio.
– Sei… O senhor desconhecido olhou para o chão
respirou um pouco mais intenso que o normal e abraçou a cabeça com os ombros.
Fobiano não quis falar. Ele sabia que o silêncio sinalizava
que o idoso buscava as melhores palavras. O estranho visitante então retomou o
discurso:
– Vou te contar uma história: Também sou cristão.
Mas, minha conversão não veio logo. Uma pessoa próxima, uma cristã piedosa, costumava
lavar o chão com suas lágrimas em orações intensas por minha alma. Um dia, ela
teve um sonho em que ficava patente que eu estaria ao lado dela compartilhando
da sua fé. Na época a retruquei dizendo que realmente ela ficaria do meu lado. Ela, contudo, contrapôs
dizendo firme: “Não, não me foi dito: ‘onde ele está, aí estarás tu’. Mas sim: ‘onde estás, aí estará também ele’”. Por
causa desse sonho, foi-me permitido estar à mesa com ela novamente – coisa que
há muito tempo não era possível. Ela entendeu que esse sonho veio de Deus. E eu
pergunto para o senhor: – De onde viria
tal sonho senão do fato de Deus ter ouvido a voz do seu coração? – longa pausa –
De onde viria tal sonho? – O idoso olhava profundamente nos olhos de Fobiano.
– Veja…bem! Respondeu Fobiano com uma voz trêmula e lenta. Tentando raciocinar enquanto
respondia, disse: – Há muita coisa a se considerar...
O idoso voltou seu olhar e corpo
para Fobiano, apertou os olhos como
se buscasse focar em algo, cofiou a longa barba branca sinalizando esperar mais
de Fobiano. Esse, por sua vez,
entendendo toda linguagem corporal, continuou:
– Como dizia…humm...algumas coisas precisam ser
consideradas. Primeiro, essa pessoa era de sua confiança? Sim, porque, não sei
se você está atualizado, mas hoje em dia…
– Era minha mãe! – interrompeu rapidamente o idoso
entendendo ter destruído a refutação de Fobiano.
No entanto, manteve seu olhar de expectativa.
– Ok! – respirou fundo – Vamos à segunda colocação:
todas as pessoas sonham. Como distinguir uma mensagem de Deus e um sonho
convencional?
O idoso ficou pensativo.
Ergueu-se lentamente dirigindo-se para fora da sala de aula. Fobiano sabia que tinha mexido com o
homem desconhecido e comemorava consigo mesmo: “Peguei o sonhador”.
Com a cabeça erguida aos céus e
olhos levemente fechados, o homem desconhecido chorou discreto. Fobiano só percebeu porque pode ver o
reflexo das lágrimas à luz do sol. O idoso voltou seu olhar para o horizonte e
disse:
– Interessante você falar sobre isso. Se o senhor conhecesse
minha mãe, saberia que quando ela queria algo, lutava ao máximo por isso. Foi
assim com minha conversão. Lutou em oração constante. Um exemplo rápido: certo pastor,
depois de agastado por ela para que viesse a mim e argumentasse comigo a favor
do cristianismo, disse a ela: “é impossível que possa perecer um filho de
tantas lágrimas”. Ela era realmente impossível. Aquelas palavras do pastor a
consolaram, pois ela entendeu serem do Senhor. E seriam de quem nobre Fobiano? De quem?
– Bem, poderia ser…
– Como estava
dizendo, - o velho interrompeu – ela era intensa. Foi assim quando quis que me casasse.
Na época, ela teve vários sonhos com meu casamento. Porém, – parou, olhou
profundamente para Fobiano e falou em
tom de sussurro – quando falava sobre eles, era com vergonha e desprezo que os mencionava.
– Por quê?
– Ela dizia que sabia discernir, não sei por qual
sabor especial (não conseguia explicar com palavras), a diferença entre aquilo
que Deus a revelava e os sonhos de sua imaginação. E ela sabia que esses sonhos
não vinham de Deus.
– Digamos que realmente tudo isso seja verdade. Venhamos
e convenhamos nobre senhor. Não quero parecer cético, mas isso não é somente
raro – é raríssimo. O senhor tem conhecimento de quantos milagres? Pode citar
pelo menos três?
De repente, Fobiano viu o chão abrir debaixo dos seus pés sendo engolido em densas
trevas. Não demorou muito e ele se
viu no meio de uma multidão agitada. Tudo era estranho: as pessoas, o lugar, a
linguagem, as roupas, o cheiro. No meio da multidão conseguiu avistar o velho
estranho. Fobiano correu. Já próximo do
homem barbudo, gritou enquanto segurava seus dois braços:
– Como o senhor fez isso? Como vim parar nesse
lugar? Onde estou? O que é isso? – gritou Fobiano
aterrorizado.
– Calma Fobiano.
Só olhe! Só testemunhe! – respondeu em tom ameno o velho homem.
Fobiano viu dois esquifes sendo carregados.
– Quem são esses caras?
– Esses “caras”, - usou a palavra com ironia – são Gervásio
e Protásio – respondeu o idoso.
– Parece que não eram muito bem vistos pela
comunidade. Nunca vi tanta gente alegre em um funeral. Eles morreram de quê? Estão
levando para onde?
– Esses homens foram mártires nobre Fobiano. Mártires! – reforçou elevando a
voz – coisa rara no seu país, não é mesmo? Eles estão sendo levados para a basílica
ambrosiana. Apesar de conservados, como você mesmo pode constatar, eles
morreram já fazem mais de cem anos. Não sabíamos onde estavam.…
– O quê? Que loucura! Por que os desenterraram? Que
negócio macabro é esse? É um ritual pagão? E como souberam onde estavam os
corpos?
– Foi revelado, em visão, ao pastor Ambrósio.
– Visão? De novo? Esse pessoal não lê a Bíblia? Sonho,
visão, sonho…só isso. Não vejo ninguém citar as Escrituras.
– Bem, pensando especificamente no pastor Ambrósio,
diria que seus quatro anos de seminário seriam equivalentes a seis meses das
leituras dele. Portanto, seja prudente quando quiser questionar o amor e a dedicação
de uma pessoa ao estudo das Santas Letras. Não seja apressado com seus
reducionismos injustos e incompassivos. Observe sua teologia meu querido. Veja:
ela é tão rígida que não permite sequer uma análise de casos. É sentença sem
julgamento. Sinceramente meu amado, eu desconfio de que a fonte de tanta
firmeza seja mais o medo da perda de controle do que o que costuma apregoar.
Não tenha medo meu amado. Você nunca esteve no controle. Nosso Deus exerce uma liberdade
soberana.
Fobiano calou-se.
Uma
cena chamou a atenção de Fobiano: um senhor
maduro, muito conhecido na cidade, ao ouvir a multidão em festa (pois vários possessos
eram libertos dos demônios), guiado (pois era cego), aproximou-se do caixão, tocou-o
com um lenço e voltou para seus olhos, que foram imediatamente abertos.
De repente, o chão novamente se
abriu e Fobiano se viu em um outro
lugar: um barco no mar revolto.
– Meu Deus que loucura é essa? O que está
acontecendo comigo? – Fobiano gritava
e chorava.
– Calma jovem, nada vai nos acontecer de mal – disse
uma voz firme e feminina.
– Desculpe senhora, mas não é bem o que parece. Olhe
à sua volta.
– Sei o que está vendo, mas estou certa de que Deus
nos dará livramento.
– Como a senhora tem tanta certeza? Por que não
pensar que Deus está nos punindo?
– Deus me revelou e prometeu em visão.
– E eu ainda pergunto. Sonhos, visões, sonhos....
– Desculpe, mas qual o nome da senhora?
– Meu nome é M…
Novamente o chão se abriu. Fobiano foi novamente tragado. Isso
aconteceu por várias vezes. Ele testemunhou muitos milagres junto com o velho
desconhecido: curas, exorcismos, curas que levaram à conversão e até
ressurreições.
– Psiu! Ei! Fabio! Acorda! A aula acabou cara!
– Você me chamou de quê? Fobiano?
– Fábio! Não é esse seu nome?
– Sim, claro!…é?
– Você está bem cara? Perdeu toda a aula.
– Aula?
– É, realmente você não está nada bem!
– Ei, – de repente Fábio levantou-se assustado e
gritando – quem é aquele velho estampado no quadro? Eu o conheço. Eu falei com
ele hoje. É o sonhador! É o homem que me mostrou vários milagres.
– Calma Fábio, isso é impossível. Aquela figura ali
é de Agostinho de Hipona. Esse foi o assunto da aula de hoje. Calma, foi só um
sonho.
Fábio
sentou, respirou fundo e sussurrou:
– Acho que não. Acho que foi bem mais do que isso. Foi bem mais que o sonho de um sonho. Foi bem mais...Foi doxológico!
Fundamentação Histórica:
Confissões, Livro III, 11.19.
Confissões, Livro III, 12.21.
Confissões, Livro V, 6.10
Confissões, Livro V, 9.17.
Confissões, Livro VI, 1.1.
Confissões, Livro VI, 13.23.
Confissões, Livro IX, 7.16
Cidade de Deus Livro XXII, capítulo VIII.
Eita pastor!!! Essa foi doido!!! Fiquei muito a fim de ler as confissões!! Massa!
ResponderExcluirMe diz ai qual a motivação de escrever sobre? Algo em especial?
Gostei muito! Sinceramente me deixou pensativo em algumas questões minha... Legal!
P.s. Vai aparecer na conferência com Pr. Granconato não??
Sds,
Elivando Mesquita
Diz homem! Sua resposta foi simplesmente demais, pois um dos meus desejos com o post foi animar a galera a ler as Confissões. Se esse foi resultado em você, estou realizado. Quanto à conferência, Deus sabe do meu desejo e também das minhas limitações. É sempre bom ouvir o Pr. Marcos, mas infelizmente não poderei ir. Abração!
Excluir“Um velho sonhador” me fez sentir o cheiro da leitura de confissões “Admirável profundidade das tuas palavras! Sua aparência nos acaricia, como se acariciam as crianças! Sim, admirável profundidade, meu Deus, admirável profundidade! O meditá-las causa um arrepio sagrado, tremor de respeito, estremecimento de amor”. Obrigada por compartilhar das suas “confissões” de história (e muita teologia). Abraços!
ResponderExcluirValeu minha querida pelas palavras. Gostei da frase que selecionou e postou no face. Show de bola! Abração!
ExcluirPastor Rômulo, estou simplesmente estasiada com essa leitura. Despertou em mim uma curiosidade tremenda, e, com toda certeza irei ler as referências históricas.
ResponderExcluirObrigada por mais uma leitura fantástica, como sempre inspirando e atiçando a nossa mente.
Feliz 2014 Pastor e tudo de bom. Que Deus possa continuar abençoando o senhor para que nós estejamos sempre abastecidos de ensinamentos tão sábios. Deus agracie sempre a sua família com tudo que há de melhor.
Obrigada Jessica! Se você ler as Confissões ou qualquer obra de Agostinho, já valeu! Abração!
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