Segue a resposta que apresentei a um colega de ministério que me
questionou sobre se deveria ou não se identificar
como um dispensacionalista (no caso dele, progressivo)
uma vez que esse sistema tem sofrido muito com os já velhos e surrados espantalhos
e, por conseguinte, com associações negativas e até grotescas (e.g., duas
formas de salvação, antinomismo):
Então, meu amigo, não é a primeira vez que essa
questão chega a mim. Outros colegas, alunos, ex-alunos, leitores e gente que
acompanha o meu canal fazem coro ao seu questionamento. Daí a razão de pretender
publicar minha resposta.
Bem, quando me perguntam sobre que sistema teológico
(ST) ou chave hermenêutica (CH) eu abraço, geralmente declaro que simpatizo ou me aproximo do Dispensacionalismo Progressivo (DP). Contudo, já deve
ter notado que não gosto de advogar ou “vestir a camisa” de nenhum sistema. Usando o recurso paulino
da ênfase – “nenhum sequer”. A razão é simples: nenhum deles explica todos os particulares textuais. Além disso, e não menos importante, em todas as CH´s, a
metodologia precede o texto (a
ontologia) – sequencia perigosa quando não se tem consciousness do processo. Para mim, o texto (ontologia) é que deve
determinar a metodologia de aproximação – não o contrário. Assim, questões como “quem
interpreta quem” na relação hermenêutica entre os testamentos deve ser
respondida a posteriori e trabalhando
caso a caso.
No entanto, eu ainda entendo que a identificação com alguma CH tem suas
vantagens. Todos têm seus pontos de partida. E nas minhas lutas com os partilhares
textuais “os a priori metodológicos e
doutrinários” do DP ainda são os que trazem menos dificuldades. Apesar da
Teologia da Nova Aliança (TNA) está perto em questões como lei mosaica, início
da igreja... A grande questão que divide DP e TNA não são tanto doutrinárias,
mas hermenêuticas – os apriorismos quanto à prioridade
hermenêutica entre os testamentos. Aqui minha tendência fica com DP;
especificamente a visão de um dos seus grandes representantes – Darrell L.
Bock: single meaning, multiple contexts
and referents.
Nesse ponto vale uma palavra sobre a natureza da doutrina. Antes, porém, uma breve
digressão elucidativa: acredito que existem pontos de contato entre o que chamamos
de doutrina e uma CH. Ambas tentam sintetizar os particulares textuais do Grande
Livro. A primeira faz um tipo de “corte temático” em toda a Escritura; já a segunda
é marcada pela ousadia (atrevimento?) de encontrar o tema unificador de toda Escritura – o mitte. Daí a razão de sermos bem mais firmes na primeira (e.g., Trindade)
e menos dogmáticos na segunda. Minha identificação com o DP, por exemplo, está
longe de vir acompanhada da mesma convicção com que declaro o credo apostólico.
A obra de Alister McGrath, A Ciência de Deus: uma introdução à teologia científica, foi uma
luz para meu entendimento da natureza
da doutrina e, por conseguinte, trouxe implicações para minha forma de ver as
CH’s (DP, TNA...). Explico: McGrath nos lembra que as doutrinas, assim como as
teorias científicas, são, por natureza, reducionistas. Para o teólogo irlandês, criticar as teorias/doutrinas
(e diria os ST e as CH´s) de reducionistas
é o mesmo que censurar a água por ser molhada. A grande questão, pois, não é se as usaremos ou as buscaremos (pois,
na verdade, precisamos delas), mas a como a empregaremos. O ponto dele é que
não podemos vê-la como o telos, mas
como declarações provisórias. Ou seja, abertas
a aperfeiçoamentos futuros.
Dessa forma, meu amigo, se todos nossos amigos
teólogos fossem como Sherlock Homes e vissem as CH´s como frutos da abdução e não como explicações definitivas dos particulares textuais,
eu não teria problema nenhum em me denominar, sem reservas, um adepto do DP. Em
outras palavras, se as vissem como a melhor
resposta que temos, contudo, não a única
e final e/ou definitiva, seria tranquilo. O problema é que os sistemas, apesar
de serem denominados por alguns de “chaves”, para muitos funcionam como verdadeiras
correntes hermenêuticas. Como boas chaves,
elas deveriam manter o debate sempre aberto
– o que infelizmente não é verdade. Quando alguém declara adotar determinada CH,
ele fala como quem encontrou o tesouro perdido – “A” Chave. O certo seria ver
as chaves como chaves – plural. Elas abrem muito,
mas não tudo. Para mim, as chaves
devem ser vistas como aperfeiçoáveis.
Foi assim, por exemplo, com doutrinas como a da Trindade e da inerrância
bíblica. As lutas contra as heresias foram lapidando
nossa compreensão e enriquecendo a
doutrina.
Pensando especificamente no DP; bem, existem
duas tendências comuns e inevitáveis no emprego de expressões que trazem
referenciais tanto históricos quanto teológicos como, por exemplo, “teologia
reformada”, “calvinismo” e “arminianismo”: a aplicação abrangente ou
particularizada demais. Os primeiros geralmente apelam conceitos amplos como
identidade histórica; já os últimos escolhem uma doutrina particular como marco definidor. Alguns, apelando para os sine qua non doutrinários do dispensacionalismo
(e.g., distinção entre Igreja e Israel) vão dizer que o DP rompeu com a escola.
Sinceramente, partindo desse sina qua non
(que acho o principal), foi exatamente isso que aconteceu. Para não delongar
muito, se existe algo de dispensacionalista no DP são basicamente suas raízes
históricas (e.g., origem em Dallas) e algumas doutrinas, práticas e tendências
hermenêuticas que não justificariam a permanência na escola. Se essa raiz
histórica e os pontos de contato são suficientes para o DP ser digno do “D” que
carrega, o próximo parágrafo talvez ajude. Mas já adianto que mudanças terminológicas
podem cair no provérbio popular “a emenda ficou pior que o soneto”.
Por fim, uma palavra sobre a expressão “D” em “DP”. Sendo direto, não
luto muito por nomes. No mundo pós-babel a linguagem sempre será carregada de
ambiguidade. Cada área do conhecimento, por exemplo, tem sua própria linguagem.
Contudo, há empréstimos de expressões entre elas. Exatamente por esse quadro
marcado pela ambiguidade que o conceito
deve ter prioridade de importância sobre as palavras.
Entendo que todas as vezes que eu inverto os valores, caio em uma falácia
perigosa.
Para fim de ilustração, pensemos na palavra
“revelação”. É comum no meio cessacionista (meu antigo mundo e seu mundo atual)
evitar o uso dessa palavra em algumas situações. Os missionários e seminaristas
dizem e/ou justificam seus ministérios afirmando que receberam um “chamado” de
Deus, contudo, evitam, a todo custo, a palavra
“revelação”. A falácia nesse caso está em valorizar mais a palavra “revelar” do
que o conceito – para mim presente. É um tipo de preciosismo
tolo. Ainda pensando na palavra “revelação”, certa vez eu perguntei a um
professor meu se ele acreditava em revelação e ele respondeu que sim, “porque
não posso deixar de acreditar em regeneração”, disse em tom irônico. Aqui o conceito foi ignorado e trocado por
outro que é representado pelos mesmos signos – pela mesma palavra. Um exemplo
final: pense na expressão grega símbolo da ortodoxia cristã “homoousios”. Ela
já havia sido usada por Paulo de Samosata para defender a ausência de distinção
entre o Logos e Deus Pai e poderia muito bem ser usada para defender o monarquianismo
modalista. Ou seja, priorize os conceitos e não as palavras. Aqui a dica é: coloque
as cartas na mesa.
Em suma, meu amado irmão, alguns nomes podem
ser usados, mas nunca tatuados. “Dispensacionalista” é um
deles. Abração!
Aquiraz,
05 de janeiro de 2018.
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