Sala de espera

Silêncio... Tosse... Passos... Folhas de livros rasgando o ar... Revista folheada... Espiro... Suspiros... Copo plástico retorcido… Novos passos...
– Querida, sabe informar se o senhor Realização Momentânea já chegou? – perguntou afobada e por sobre os ombros a recém-chegada na grande e central sala de espera do Centro Comercial Bios.
– A senhora já pegou a senha? – respondeu ríspida a recepcionista sem sequer dirigir o olhar para a senhora Futilidade. “Definitivamente esperar não é para todos; aliás, ainda não fui apresentada a quem espere com alegria”, pensou.
– Entendi. Futilidade sussurrou falando consigo mesma com ar de desprezo enquanto buscava um lugar para assentar-se: “Assistir o esperar dos outros parece que apodreceu os ossos ‘dessazinha’”, pensou.
Ding Dong.
Todos se voltaram automática e ansiosamente para o grande painel eletrônico que informava: Senha G Sala 4.19.
– Finalmente! Levantou-se rapidamente o jovem Libertinagem em direção a sala da doutora Lascívia.
“É sempre assim, dentes acesos na entrada e ombros caídos com o peso do vazio na saída”, pensou a recepcionista enquanto dirigia seu olhar incrédulo e depreciativo para o jovem que abria a porta do consultório estampando o sorriso idiota dos iludidos – prefácio do vazio.
Entre a abertura de uma porta e outra, vez por outra a atenção curiosa da recepcionista se voltava para uma figura destoante e estranha – apesar de comum. Tratava-se de um homem de estatura e porte insignificantes, roupas ordinárias, barba rala, cabelos castanhos, movimentação frugal – camuflado.
“Por que ele me chama tanta atenção?” perguntava a si mesma Desilusão – a recepcionista –, enquanto dirigia um olhar discreto para o homem misterioso. “Ele é tão comum; tão ordinário”. Com a testa enrugada e olhos semicerrados, Desilusão buscava uma explicação decente para seu incômodo mental. “Seriam seus óculos?”. Buscou, numa visão panorâmica, encontrar um elemento desarmônico que a orientasse na busca por sua resposta. Com uma atenção sintética pôde ver na grande sala de espera pessoas roendo as unhas, caminhando em círculos, chorando, gemendo, dormindo... Alguns rostos estampavam sorrisos que apontavam para o nada; outros ostentavam olheiras profundas, ainda havia aqueles que falavam com os espelhos... Percebeu, pela primeira vez, que alguns já estavam mortos – logo comunicou os responsáveis pela retirada dos corpos.
“Já sei”, quase saltou do assento. “Ele é o que está há mais tempo aqui. Pessoas entram e saem, vão e voltam, mas ele; ele nunca entrou em qualquer sala”. Por um tempo esse raciocínio pareceu ser uma explicação viável e satisfatória para a atenção dada a uma figura tão insignificante. Experimentou certo descanso mental.
Ding Dong.
Novamente olhares atentos ao painel da espera. Senha T Sala 4.2.
– Agora vai! Finalmente! – Gritou entusiasta o senhor Cobiça com punhos cerrados socando o ar e aos pulos. Era a décima quinta sala que ele entrava somente naquela semana. “Agora vai” era seu mote. As próximas portas revelariam que o “agora” ainda não chegara.
            Desilusão, com seu ceticismo característico, disse consigo mesma: “Não vai demorar muito. Logo ele sairá com o velho sorriso amarelo e apático que lhe é peculiar. Porém, rapidamente procurará uma nova porta. Que povinho previsível esse! Pra quê profetas se nada há de novo na grande sala de espera?”. A cada entrada Desilusão respirava fundo, olhava semicerrado para o alto com desdém enquanto meneava a cabeça negativamente.
Ding Dong. Senha T Sala 1.8.
Senhora Dubiedade levantou-se; parou, olhou pensativa para a sala 6.4 com a senha M – a sala do senhor Dinheiro; voltou seu olhar para a sala 10.37 – a sala da Família acima de tudo. Alternou o movimento mais umas quatro vezes e voltou a sentar. Depois dirigiu o olhar para mais duas outras salas.
– Senhora Dubiedade, por favor, afinal de contas, a senhora vai entrar ou não? – Gritou Desilusão impaciente.
Silêncio. Olhar perdido. Paralisia. Senhora Dubiedade permanecia estática com mais onze senhas na mão. Ela esperava entrar nas salas da Amizade, do Sucesso no trabalho, da Saúde, da Fama... Já estava ali há anos sem ter entrado em qualquer sala.
– Perdeu mais uma vez senhora Dubiedade!Gritou irada Desilusão. Sinceramente, não sei o que é pior, entrar feliz e sair decepcionado ou não entrar de jeito nenhum. A recepcionista apertou mais uma vez o placar luminoso. Senha P sala 10.28. Era a sala de Realização Momentânea. Futilidade entrou esnobe olhando com desdém por sobre o ombro no alto dos seus 1,50 metros.
Desilusão voltou sua atenção ao homem comum. Percebendo, já há um tempo o interesse da recepcionista, o homem misterioso quebrou o silêncio:
– Lembro-me muito bem quando você estava do lado de cá. O homem tinha uma voz forte, aveludada e quente. Ele folheava um livro velho sobre suas pernas cruzadas; seus óculos redondos repousavam na extremidade do seu longo nariz – a impressão é que estava sempre prestes a cair –, seu olhar, quando dirigido ao livro, dava a impressão de ter seus olhos fechados.
– Está...é...fal...ando...comigo? – gaguejou surpresa Desilusão.
– Quem mais esteve aqui esperando, transitou entre todas essas portas e – com olhos arregalados e acusadores sobre os óculos – desistiu?
Desilusão não sabia o que dizer. Selecionou um blend de mentira e verdade – combinação perfeita para compor um ataque áspero, destrutivo e “eficaz” – e disse:
– Não o conheço, não sei o seu nome, de onde veio; aliás, olhando agora para o senhor percebo que não há nada de interessante que despertasse meu desejo em sua pessoa. Em suma, permaneça em sua insignificância e espere ou morra de esperar como todo mundo.
– A mudança de assunto ou a fuga de uma conversa que busca a verdade é um recurso muito frágil nobre Desilusão. Quanto à minha pessoa, vou ser direto: sou filho do casal e Promessa. Minha dieta consiste de história e esperança; espero pelo que já veio e pelo que não vejo; olho para trás e para frente ao mesmo tempo, contudo, meu olhar é sempre focado. Sou como árvore: cresço para cima e para baixo. Espero pelo que não tenho enquanto aproveito o que me é disponível. Não espero uma porta, mas pela Porta. Alguns dizem que vivo numa tensão. Sim, é verdade. Mas, prefiro dizer que estou no limiar.
Desilusão olhou com desprezo. E balbuciou falando consigo mesma:
– Estou cansada dessa retórica estérea. Mero jogo de palavras.  
Como não viu qualquer sinal de refutação real às suas palavras, o homem misterioso cutucou a recepcionista enquanto olhava para livro com o olhar baixo aparentando indiferença:
– Não ache que por estar na recepção você não espera por algo. Você não é uma espectadora passiva. Ah, isso não é mesmo! Não há criatura que não espere. Toda humanidade está aqui. Isso não muda somente por estar “do outro lado”.
– Cansei de esperar! Interrompeu afobada. É isso! Cansei!
Parou. Pensou. E, em meio tom disse:
– Não que meu cansaço ou descrença fosse o suficiente para querer adentrar a porta da morte antes de receber minha senha – a senha que poucos pedem, mas mesmo assim chega.
– Não pense que podemos medir o tamanho da esperança de alguém por isso. Já vi muitas pessoas indo para a porta da morte sem senha; contudo, estou certo de que tinham mais esperança que você. Os invasores da porta da morte não são todos iguais. Não existe uma única explicação para arrobarem a porta indesejada. E, garanto, a falta de esperança não é a única explicação. Em alguns casos o gatilho é acionado enquanto se espera o melhor. Não é uma questão de se a esperança está ou não presente, mas em sua intensidade e relação com outras virtudes e vícios. Há pessoas sentadas na grande sala que existem – só isso. São mortos vivos. Só esperam a morte. Só. Você é uma delas senhora Desilusão.
 Silencio.
Ding Dong. Senha 1C. Sala 15.55.
Ding Dong. Ding Dong. Ding Dong...
Desilusão, confusa, apertava repetidamente o botão. “Que diabo de porta é essa?”, se perguntava. 15.55? Que número é esse?
O homem comum lentamente levantou-se; fechou os olhos suavemente, respirou fundo enquanto estampava um leve sorriso. Dirigiu-se numa postura ritual a Desilusão fixando firme e amigavelmente nos olhos da recepcionista. Ele estava consciente de que seriam suas últimas palavras. Não argumentou. Simplesmente proclamou:
 – No início só existia uma porta e uma grande e única sala. Nosso primeiro pai a rejeitou. Em rebeldia ele ergueu as primeiras paredes e, desde então, várias salas e portas surgiram tentando usurpar A única Porta e A Grande Sala.
O homem desconhecido pausou entendendo ser necessário a fim de que suas palavras fossem devidamente digeridas. E continuou:
– Percebi seu nervosismo devido a ignorância quanto à denominação da sala da minha senha – sala 15.55.
Aproximou do ouvido de Desilusão e sussurrou:
– Existem mais salas que você ignora. A O Centro Comercial Bios é maior que suas expectativas ou sua percepção das esperanças pobres dos que testemunha todos os dias.
Nova pausa. Desilusão acompanhava atenta. Sofria com o confronto. Cada palavra machucava, mas ainda assim desejava ouvir.
– Não sabe que porta é essa? A 15.55? É sala da morte e da vida; a sala da morte que foi morta pela vida. Você não consegue ver porque precisa passar por outras portas. Entrar em salas que não refletem seus desejos, ansiedades e decepções. Salas criadas para retomar o caminho da Grande Sala. Criadas por uma vontade alheia a sua e a de qualquer pessoa presente na grande sala de espera.
O homem comum retirou do seu livro velho um pequeno papel escrito “Senha R”. Logo em seguida tomou o lugar de Desilusão e assumiu o papel da recepcionista apertando o botão de chamada do grande painel luminoso. O painel revelou: Senha R Sala 1.16.
– Que sala é essa? – retrucou Desilusão.
– É a sala da boa notícia, da satisfação, do contentamento – da plenitude.
– O que tem lá?
– Mais do que desejou para você e menos do que pensou sobre você.
– O que ela diz sobre mim?
– Posso garantir que conhecerá muito sobre você. Contudo, logo saberá que ela não é sobre você. Ela ofensivamente amorosa. Na medida em que você aprecia a beleza da dessa sala, esquecerá de você mesma. Em outras palavras, experimentará uma dose saborosa e doxológica de narcisismo invertido.
– E as outras salas?
– Perderão o brilho. Verá como verdadeiramente são: portas velhas, enlodadas e tombadas que escondem salas sujas, enlameadas e em ruínas. Verdadeiras bocas devoradoras; assassinas de almas como deuses falsos – como as falsas esperanças.
– E a Grande Sala?
O homem apontou para o papel dado a ela e fechou a conversa:
– Senha R, sala 1.16.
O homem simples saiu acompanhado de perto pelo olhar perseguidor de Desilusão. Ela agora sabia porque o homem ordinário chamava tanto sua atenção. Ele sabia pelo que espera. Era sólido – palpável. “Isso faz toda diferença”, pensou. Sua memória foi revigorada e pôde reviver, como em um filme, alguns momentos da vida do homem misterioso na grande sala de espera. No seu filme mental ela pode ver que ele esperava pelo que já podia usufruir. Era real. Ele tinha o sorriso de quem estava na Grande Sala mesmo que ainda não. Não era somente a certeza que fazia a diferença, mas o desfrute antecipado alimentava o vigor no esperar. Sua certeza nascia da realidade experimentada. “Todos esperam”, pensou. “Pelo que espero?”, questionou a si mesma. Olhou para senha presenteada e sussurrou “Senha R, sala 1.16. A boa notícia”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Perfil

Minha foto
Rômulo Monteiro alcançou seu bacharel em Teologia (Seminário Batista do Cariri – Crato/CE) em 2001; concluiu seu mestrado em Estudos Bíblicos Exegéticos no Novo Testamento (Centro de Pós-graduação Andrew Jumper – São Paulo/SP) em 2014. De 2003 a 2015 ministrou várias disciplinas como grego bíblico e teologia bíblica em três seminários (SIBIMA, Seminário Bíblico Teológico do Ceará e Escola Charles Spurgeon). Hoje é professor do Instituto Aubrey Clark - Fortaleza/CE) e diretor do Instituto Bíblico Semear e Pastor da PIB de Aquiraz.-CE Casado com Franciane e pai de três filhos: Natanael, Heitor e Calebe.